domingo, 6 de junho de 2021

RETIFICAÇÃO

No conceito de retificação podemos encontrar diferentes ideias e significados. Retificar, de modo geral, significa corrigir o que está errado. O filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) em seu livro, “A formação do espírito científico” (1996) trata com profundidade a relação entre objetivo e subjetivo quando, o primeiro tem a responsabilidade de corrigir o segundo. Disse Ele, “Uma descoberta objetiva é logo uma retificação subjetiva. Se o objeto me instrui, ele me modifica”.

            Temos em nós “verdades aprendidas” socialmente que se tornam saberes superficiais formadores do “senso comum” ou do entendimento mais rasteiro, misturando, superstições, crenças, informações, alucinações, medos e, raramente, esclarecimentos.

            As diversas áreas do conhecimento científico são responsáveis para retificar em nós os entendimentos equivocados, é quando a objetividade atua sobre a subjetividade e, na intimidade humana, na qual guardamos as nossas compreensões erradas ou insuficientes, ocorre uma ruptura. Para isso precisamos que o consciente assuma a liderança sobre o ilusório para proceder à retificação das ideias equivocadas. Há, portanto, que proceder por meio da ciência essa “ruptura” com as ideias erradas e enfrentar todas as dificuldades decorrentes. Todos nós sabemos da luta de Nicolau Copérnico (1473-1543) para defender o sistema heliocêntrico mostrando que era a terra que girava ao redor do Sol e não o contrário.

            Na Psicanálise esse fenômeno se dá pela força do consciente agindo sobre o inconsciente, retificando neste, aquilo que ele registrou como trauma, recalque, pulsões, luto etc. Enquanto isso não for alcançado, os transtornos do inconsciente dirigem a vida do indivíduo transtornado.

            Os diversos transtornos e traumas criados pelas relações que estabelecemos com o mundo objetivo criam efeitos e consequências em nossa subjetividade. Essas relações podem ser, familiares, escolares, religiosas, culturais, políticas etc. Nascemos e crescemos pressionados para adotarmos os comportamentos indicados pela civilização. Quando agimos “errado” por acharmos certo, nos condenam e nos fazem voltar a praticar o “certo” que conscientemente é completamente errado.

            Por outro lado, os traumas têm origem em diferentes fontes e ocorrem a qualquer tempo. Nos interessa, aqui, para voltarmos ao conceito de “retificação”, observarmos a infância da nossa última fase política, tida como “democrática”, iniciada após muita luta em 1985, quando foi debelada a ditadura militar no Brasil.

            Na década seguinte, ainda dentro do século passado, apesar das reações populares aparentemente de revoltas conscientes, confrontamos os desejos por mudanças com o medo da volta da ditadura. Os avisos para “tomar cuidado” eram constantes que, falar em armas, mesmo em eventos fechados era motivo de retratação posterior às instâncias partidárias, tiradas por menos, como se aquilo fosse apenas uma expressão ocasional. Esse exemplo de agir “errado” contra a ordem, era o certo, mas para aqueles que objetivavam governar o país por meio da via pacífica era o totalmente errado.

            Isso nos mostra que a política também efetua terapias. Com o passar dos anos, as constantes mobilizações empurraram o medo consciente para o inconsciente coletivo e, com as repetições constantes de, “Sem medo de ser feliz” e “A esperança venceu o medo”, esquecemos das armas e dos militares ou, mais propriamente, foram as primeiras por uma política de desarmamento, recolhidas e, os últimos “controlados”, chegando a ser alçado como ministros da defesa um “comunista” e depois um “ex-comunista”. Mal comparando, essa situação, deu a impressão aos pardais, de que a águia havia se tornado uma galinha.

            Se o consciente político retificara o inconsciente traumatizado, retirando dele a preocupação do medo, no outro aspecto das relações objetivas, levou-nos a criar falsas ideias que levaram a subjetividade coletiva a acreditar que o “senso comum” passara a ser o oráculo das verdades. E eis que, de um momento para outro, nos sentimos como se tivéssemos voltado à infância e reencontrado os medos, principalmente aquele mais violento e sanguinário, o da ditadura militar. E, as armas tão temidas pela esquerda, passaram, como o lema de, “Povo armado jamais será dominado”, a ter o uso incentivado pela extrema-direita. Não teria sido certo então, termos feito o mesmo?

            Voltamos à infância psíquica e os transtornos inconscientes voltaram a abalar os comportamentos dos adultos dirigentes que, por serem os próprios terapeutas, aplicam os mesmos métodos em busca das mesmas soluções. E eis que se pretende fazer valer o senso comum, como fazem os negacionistas sobrepondo-o à ciência; estes últimos porque a negam, os outros porque não recorrem a ela e atém-se à necessidade do “projeto nacional”, como se fosse a planta da construção a ser realizada pacificamente com o trabalho das segundas às sextas-feiras. 

            Quando falamos em política, é verdade, nem sempre é possível pensar e agir cientificamente. Há medidas emergenciais e táticas a escolher que nem sempre foram comprovadas. Isso tudo é normal. Anormal é tentar reparar um mal, não pela elaboração consciente, mas com terapias que levam às crenças do senso comum a obscurecerem as reais contradições.

            A retificação consciente exige que haja a superação de todas as ideias equivocadas, consideradas verdadeiras, principalmente aquelas que ignoraram as classes e a função coercitiva e dominadora do Estado. Se a ferida foi redescoberta e o medo de um novo golpe voltou a assombrar, é certo que os mesmos erros serão cometidos ao se forem preservadas as causas daquele ferimento.

            Retificar os erros exige que as ideias sejam corrigidas e as medidas sejam reelaboradas. Se compararmos o Estado a uma jaula, dentro dela, os trabalhadores continuam sendo trabalhadores. Não ameaçam porque não sabem fazer o mal. Tornam-se tão mansos que um dia podem ser tirados para fora e largados nas ruas. Mas, os leões, na mesma jaula, continuam sendo leões. Perigosos e, quando soltos, tornam-se ainda mais violentos em busca de condições de voltarem para dentro de onde foram tirados.

            De fato, as forças da direita são muito mais pragmáticas quando lhes interessa. Quem diria que elas viessem um dia escancarar a licença para a aquisição de armas sendo que a maioria dos explorados são seus inimigos mortais? Por outro lado, de que valeu as forças da esquerda institucional temer o golpe militar no final do século passado, se foi a sua própria ingenuidade que o fez recolocar-se como uma possibilidade real nos dias atuais?

            Retificar é o conceito a ser posto em discussão. Sem isto, o alvo estratégico não vai além da porta da jaula dos leões, local onde são trancadas e amansadas todas as potencialidades de rupturas e são alimentadas as condições para futuros golpes.   

                                                                                                                Ademar Bogo              

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