domingo, 23 de maio de 2021

A QUESTÃO DIGITAL E A REVOLUÇÃO

Cada época apresenta os seus problemas. Marx, em seu tempo, ao escrever o prefácio para “À crítica da economia política”, para publicação em janeiro de 1859, destacou que, uma formação social não perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças de produção para as quais ela é suficientemente desenvolvida e, novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade. Por isso, astutamente viu e concluiu, imperativamente que, “...a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou pelo menos,  são captadas no processo de seu devir”.

Essa conclusão pode ser vista como uma síntese dos processos anteriores quando, os problemas e as tarefas foram combinadas ao longo dos séculos para superar cada um dos modos de produção, até a humanidade chegar ao capitalismo, estruturado, fundamentalmente, pelas relações entre o capital e o trabalho, com a presença do poder político e jurídico centralizado no Estado capitalista.

Se voltarmos ao início da revolução industrial e fizermos um recorrido até o final do século vinte, veremos que as mediações fundamentais para a produção e reprodução, basearam-se na propriedade dos meios de produção e da força de trabalho, tendo como retaguarda a estrutura familiar. Enquanto a maior parte da família composta por sujeitos livres e iguais vendiam, fora de casa, como mercadoria especial a própria força de trabalho, a parte menor, dentro de casa, garantia o preparo da alimentação, a lavagem da roupa, a limpeza e a arrumação da casa; de tal modo que, a maioria dos indivíduos componentes da sociedade, estava ocupada ou estudando para vir a ser explorada.

Por outro lado, se a era cristã iniciou com uma população mundial de 170 milhões de pessoas, no ano de 1800, chegou a 1 bilhão e, somente em 1927, dez anos após a revolução  russa e início dos preparativos da Segunda Guerra Mundial, a reprodução humana viva, alcançou o número de 2 bilhões. Quantidade pouco expressiva se compararmos com o ano de 1999, quando os humanos, em meio ao impulso da maior revolução tecnológica já vista, alcançamos a casa dos 6 bilhões de pessoas.

            Esses números são importantes para percebermos que antes da necessária revolução tecnológica e, desde a época de Marx, a mudança fundamental no mundo do trabalho se deu pela variação e passagem da mais-valia absoluta (para atender as necessidades do consumo, aumentava a jornada de trabalho), pela “mais-valia relativa”, a qual, aumentando a velocidade da produção, conseguia reduzir o tempo social médio para produzir em grande escala e atender a demanda do mercado.

            Com o melhoramento das máquinas, o risco de ampliar o “exercito de reserva” ficou ainda maior e, de fato, a tecnologia anunciou que com ela não haveria mais necessidade de grande número de indivíduos ligados à produção e, com isso trouxe também um problema para o clássico conceito da classe social, articulada pelos sindicatos e partidos políticos para assumir a condução da revolução. Com isso em algumas poucas décadas, o proletariado foi reduzido e os instrumentos de luta perderam a força e a serventia.

            A “era digital”, nome novo para identificar as funções sociais dos 8 bilhões de indivíduos a existirem no mundo em 2023 e, 10 bilhões até em 2050, isolará, não mais em cada fábrica, mas em postos de trabalhos sem lugares certos  ou simplesmente no recinto dos lares sem direitos nem horários determinados como acontecia anteriormente com a força de retaguarda da parte familiar que trabalhava fora de casa.

            Diante deste diagnóstico, observando os avanços tecnológicos e da decadência do capitalismo é de fundamental importância perguntar sobre qual é e será a função da política bem como a possibilidade da revolução, como sempre se fez no passado? Parece serem estes os pontos críticos a serem enfrentados e como fez Vladmir Lenin, em 1900 ao término do cumprimento de 3 anos de pena na Sibéria, recolocar a pergunta: “Por onde começar?”.

            Com uma atenta visualização comparativa veremos que, antes dos avanços tecnológicos contemporâneos, a grande maioria da população estava envolvida em alguma forma de trabalho contratado e era representado por alguma categoria definida. Portanto, compunha a classe trabalhadora e, por meio de uma ou outra representação podia ser reunida para tomar decisões, realizar estudos e aprovar diretrizes e planos de luta. Na medida em que o processo digital invadiu, não apenas o processo produtivo, as coletividades foram dispersadas. Os indivíduos despachados para as suas casas passaram, desde este lugar, a se “categorizarem” dando função à força de trabalhado, mantendo-a como mercadoria e, apropriando-se do meio de produção digital, fizeram-no produzir outras mercadorias, com autonomia ou mesmo vinculados a alguma plataforma ou empresa.

            O trabalho, portanto, mudou, por que não mudaria a política e as formas organizativas? Parte dos trabalhadores, de todas as idades, passou a trabalhar em lugares e tempos incertos. No entanto, se por um lado a tecnologia contribui para a inserção nas atividades laborativas, desde as crianças aos mais idosos, ela também encarrega-se de reduzir os direitos sociais e trabalhistas e a qualidade dos serviços públicos.

            Se a humanidade somente se coloca as tarefas que consegue resolver, embora não se tenha ainda uma clara evidência das formas organizativas, permanecer com a ideia da manutenção da “estrutura sindical”, do “partido político cartorial” e dos “movimentos reivindicativos” ou na identificação de “esquerda e direita”, representaria, fazer política, mesmo estando nos dias atuais, como se estivéssemos ficado presos no século passado.

            O que temos de válido e insuperável enquanto perdurar o capitalismo? Em primeiro lugar, o processo revolucionário de sua superação. A exemplo do que fez a burguesia mercantilista ainda no seio do feudalismo, que se introduziu como uma nova classe entre os senhores e os servos, os trabalhadores autônomos estão, pela descentralização do trabalho e apropriação da tecnologia, manejando-a como meios de produção próprios, intrometem-se entre os patrões e os proletários clássicos. Significa a formação de uma nova força construidora de novas de produção e, apontam para novos desafios políticos.    

            Em segundo lugar temos como válido no processo de superação do capitalismo, a forma partidária de organização política. Essa forma partidária deve ser entendida como a “parte” consciente dessa sociedade a ser transformada. Nesse sentido, é ainda válido e aproveitável o conceito de “partido de quadros” que permeou os processos revolucionários anteriores com o nome de “Frente”, “Movimento”, “Organização” etc. É urgente que se crie esta referência organizativa, com a função de usar todos os recursos para estar presente em todos os lugares.

            Em terceiro lugar, é válida a afirmação do direito público sobre o direto privado. Na medida em que passamos a perceber que o público é mais do que um direito, é também um valor que permite o atendimento à coletividade, como deve ser o sistema digital e todas as redes partilhadas, a propriedade privada sobre os meios de produção passará a ser vista como um roubo e uma ofensa contra o bem comum. A exigência da socialização será inevitável.

            Em quarto lugar, valida é a forma insurrecional que direciona os esforços de todas as forças e indivíduos para o mesmo objetivo. Cada coletividade terá a sua função e o seu papel a cumprir. Para tanto é necessário que a “parte consciente” se faça presente em todos os lugares, postos de trabalho coletivos, familiares ou pessoais.

            Para que isso tudo seja possível é fundamental o estabelecimento de uma causa comum. Enquanto isso não estiver posto, haverá dispersão de entendimentos e de forças que se empenharão em responder aos dilemas sociais, com as mesmas medidas tomadas pelas forças contrárias. A ausência de uma proposição clara permite que as forças inimigas se utilizem das ideias distorcidas do comunismo para amedrontarem a população e serão bem sucedidos, pelo fato de ele não estar posto como a verdadeira e definitiva solução para os problemas da humanidade.

            Cabe aos indivíduos dispersos, formados para cumprirem determinadas tarefas no período anterior, se darem conta das mudanças e superações efetuadas na base econômica e social e, a partir disso, reunirem-se para estabelecer coletivamente as novas tarefas políticas.

                                                                                                          Ademar Bogo      

           

 

               

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