domingo, 4 de outubro de 2020

AS DUAS METADES


O filósofo Arthur Schopenhauer ao escrever “Sobre a doutrina da indestrutibilidade de nosso ser verdadeiro pela morte”, disse que, o presente se constitui de duas metades: “Uma objetiva e a outra subjetiva”. A primeira lida com o tempo e a segunda permanece sendo sempre a mesma porque se refere às lembranças e a memória. De outro modo, outros escritores já relacionaram o aspecto “objetivo” com as condições materiais e os subjetivos com a qualidade e os níveis de consciência.

O grande dilema que encontramos nesse constructo é saber se “as duas metades” corresponde uma à outra, no sentido material e intelectual. Ou seja, se a substância física, em termos de massa, tem algo a ver com a capacidade de entendimento do tempo presente e se a metade subjetiva conduz ou se submete às necessidades da metade objetiva?

Na medida em que vamos aprofundando esse raciocínio vamos também compreendendo que as duas metades contidas em um só indivíduo, começa a se estender cada vez mais para cada tempo presente da realidade social, na qual o elemento da metade objetiva cresce com a formação de grades contingentes de massas necessitadas e, a outra metade, a subjetiva, continua orientada pelo entendimento do senso comum, cada vez mais baixo e desqualificado.

Ao transferirmos a análise para as disputas políticas, espaço do tempo presente que visa atingir as “duas metades”, transformando-as em forças a favor e contra, vemos surgir dessa associação, a identidade cada vez mais permanente do “sujeito político” que, embora não tenha consciência de sua contribuição, apresenta-se como sendo o mais novo sujeito da História.

            Esse entendimento é de fundamental importância para os socialistas e comunistas posicionarem as suas forças nas disputas conjunturais e, principalmente nas transformações estruturais da sociedade, isto porque, se o capitalismo no aspecto produtivo transforma a matéria prima descartada em novas mercadorias, o mesmo ocorre com as massas humanas miseráveis que, existindo fisicamente como metade objetiva, passou a ser, por intermédio dos programas assistenciais o lugar da construção da outra metade, a subjetiva, cujo objetivo é formar a maioria para oficializar a vitória da ordem.

            Se subirmos mais um grau na análise das disputas entre as forças que se consideram aptas a governarem o país, veremos que, não se disputam projetos antagônicos, mas unicamente a memória e as lembranças que estão localizadas na metade subjetiva, separadas também em duas partes: mais antigas e mais recentes. Podemos, dessa forma, concluir que, no tempo presente, as forças partidárias igualam-se nos desejos formados na “política do imediato” e agem despreocupadas sem qualquer planejamento para com o futuro. Revelam assim que, sem ter ideia alguma que oriente para onde ir, não há o que planejar, no máximo que conseguem expor, é o que irão desconstruir.

            De volta às categorias das “duas metades”, o IBGE divulgou os resultados de uma pesquisa recente, na qual declara que, pelo menos 52 milhões de trabalhadores estão fora do mercado de trabalho; leia-se, “não encontram compradores para a mercadoria força de trabalho”. Em parte essa realidade foi agravada pela Pandemia, que levará a culpa pelo não crescimento econômico, mas não é verdade. O fato é que a diminuição de vagas nas empresas empregadoras vem caindo desde a década de 1990. Isso nos diz que não adianta sonhar com perspectivas melhores para depois da Pandemia, porque a rejeição de grandes contingentes de trabalhadores, na senilidade precoce do capitalismo, tornou-se estrutural.

            No entanto, se do ponto de vista econômico essa “metade objetiva” da força de trabalho é descartada, do ponto de vista político ela passa a ter um valor de disputa cada vez maior. Serão essas massas que decidirão as disputas eleitorais do futuro por meio da venda antecipada, estruturadas com o dinheiro público na forma de “Programas assistenciais”. Essa vem sendo a lógica da argumentação dos governos que saem e continuada pelos governos que entram, quer-se mesmo é disputar a memória e as lembranças, mais antigas e mais recentes.

            Essa dinâmica que visa “sequestrar a metade subjetiva” das grandes massas invalidadas para o emprego, vitimou as forças de esquerda que se posiciona sobre a memória do passado, como o passageiro que perdeu o ônibus e corre acenando para que ele o espere no próximo ponto. As forças de direita sabem que a memória do passado permanece se houver consciência, caso contrário prevalecem as lembranças mais recentes que se movem pela gratidão e, para isso, basta melhorar um pouco o preço da cooptação assistencial.

            Em síntese, os programas assistenciais tornaram-se desde a década de 1990, a energia para mover a “indústria da cooptação” da metade subjetiva das massas pobres desorganizadas e também das categorias organizadas em movimentos sociais. Essas práticas levaram a formar gratidão e não consciência.

            A bem da verdade, as forças de esquerda perderam o rumo desde que o movimento sindical deixou de ser a força representante da classe, principalmente operária, que insurgia-se contra o capital em defesa do trabalho e dos trabalhadores e o partido político, como parte consciente, tinha como objetivo e finalidade a realização da revolução. É certo então, que não sabendo como lidar com essa nova realidade “objetiva e subjetiva” e sem saber para onde devem rumar, os partidos de esquerda ficam cada vez mais mansos e identificados com a ordem capitalista dominante.

            A realidade social atual exige que, surjam novas organizações que saibam combinar a metade objetiva com a metade subjetiva e se proponham, conscientemente, a planejar para alcançarem a finalidade que é a superação do capitalismo. Até lá, os desvalidos da economia, serão os validadores da democracia e defensores do Estado e de governos capazes de comprarem antecipadamente os votos que asseguram e legitimam a sociedade desigual que se asfixia com a própria corda da barbárie.

            A metade objetiva será verdadeiramente força revolucionária quando a parte subjetiva estiver enraizada na consciência e não apenas em lembranças saudosistas.

                                                                                  Ademar Bogo

             

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