domingo, 8 de março de 2020

A CULTURA CRÍTICA E A CRITICA DA CULTURA


   
            O filósofo brasileiro Carlos Nelson Coutinho, ao refletir sobre a cultura reconheceu que a liberdade de criação pode estar condicionada a dois limites: o primeiro diz respeito ao quadro histórico-social no qual o criador atua e, dado que a liberdade é também conhecimento da necessidade, o criador deve tomar consciência das implicações sociais de sua produção. Segundo, no dizer do autor, a mais ampla liberdade de criação, tem como contrapartida, a mais ampla liberdade de crítica, que vem a ser o direito do próprio criador ou de outrem de avaliar aquilo que foi feito. É na observação desses dois limites que se reconhece a possibilidade da cultura ser acerto ou fracasso.
            Do ponto de vista histórico social a reflexão avançou no sentido de localizar que o Brasil nasceu na época da expansão mercantil e, por isso, o receituário “cultural universal” do colonialismo era extorquir valores de uso com a finalidade de transformá-los valores de troca, ou seja, transformar em dinheiro aquilo que era usual.
            Nesse sentido, deduzimos facilmente que a preservação das florestas pelos povos o nativos, parte vital da conservação dessa cultura, sustentada pelo valor de uso, de um momento para outro passou a ter valor de troca e, muito daquilo que é da cultura local transformou-se em mercadoria para abastecer a cultura universal. Essa transmutação de valores ainda não acabou. Repetem-se cotidianamente quando os interesses capitalistas invadem os territórios indígenas, para implantarem sobre a cultura natural, a cultura do boi, que compõe a mercadoria, carne vermelha; a cultura do ouro que compõe a mercadoria jóias, a cultura da barragem que produz a mercadoria energia elétrica.
            Por outro lado, o fortalecimento da exploração humana transmutou-se da mercantilização da liberdade e da vida dos escravizados, para a mercatilização do suposto direito da venda da força de trabalho, mediante o pagamento, por parte dos donos do capital que transformam a força humana em valor escondido em cada produto.
            O mercantilismo ao abrir as portas para as trocas internas e as transações externas estabeleceu como princípio a mais ampla liberdade de criação. Criam-se produtos para todos os tipos de consumidores, ou seja, no seio da indústria de mercadorias surgiu também a enganosa indústria cultural.
            É nesse movimento histórico social que o mercantilismo foi estabelecendo níveis de acesso e também de redução de possibilidades do acesso à cultura, mesmo essa que se expressa por meio do consumo. A começar pelos índios e para uma imensa quantidade dos descendentes dos escravizados do passado, o acesso aos produtos da civilização torna-se cada vez mais difícil. É neste entretanto que deveria reinar a mais ampla “liberdade de crítica”, mas o que se vê é reduzir o entendimento sobre os limites anteriores e avolumarem-se os limites cerceadores.
            É importante compreender o que Karl Marx tratou exaustivamente, quando disse que a base econômica da sociedade capitalista determina todas as demais relações, por isso, quando tratamos da “crise econômica”, devemos ler esse conceito como “crise da civilização”. Isto quer dizer que, decrescem junto com a estagnação do crescimento econômico, todos os tipos de liberdades e com elas vão desaparecendo as iniciativas oficiais, chegando ao limite intolerável de fazer sobrar, para mais da metade da população da nação, o “pum de talco do palhaço”, transformado em referência de cultura.
            O que é cultura para este ser “extrassocial” que passou a vida rangendo os dentes contra as forças progressistas e atuando na televisão fazendo da ficção uma ilusão real? Não seria ela mesma o “pum de talco” ou de “pó de arroz” como se dizia no passado, que servia para esconder a pele carcomida pela verdade do tempo? Um pum de talco que tem a duração tão breve como uma gargalhada?
            Começa a ficar distante o tempo em que os governantes para se manterem no poder ofereciam “pão e circo”, o que oferecem são palavras e ameaças. As liberdades vão sendo reduzidas ao nível das possibilidades do que cada um pode comprar. O governo, além de desconsiderar as dívidas sociais elogia os devedores e os malfeitores do passado, dizendo que as vítimas da escravização tiveram sorte em serem vítimas, mostrando assim que, ser escravo no passado e também no presente, é um privilégio e não um castigo.
            Certamente indicam esses promotores do mal, que as crueldades civilizatórias ainda por vir serão muito piores, isto porque, o sistema mercantil não permite relacionamentos entre quem tem e quem não tem poder de compra. O valor de troca submete o valor de uso a quem tem acesso ao dinheiro. Sendo assim, até mesmo os serviços públicos e o direito à cultura, cada vez mais passam para a iniciativa privada ou simplesmente são desconsiderados pelo governo. Daí é que justificam o fortalecimento da cultura do crime, do uso das armas e do compartilhar de mensagens mentirosas nas redes sociais.
            No mesmo sentido, o certo e o errado, o bom e mau, ou seja, à critica da cultura passou a ser o senso desqualificado das autoridades. Buscam por meio de bravatas, instigarem o povo para que faça, com o vazio de perspectivas, um elogio à deseducação.
            Se por um lado a base econômica unifica a todos os condenados aos sacrifícios pela perda das condições de acesso aos bens de uso materiais e intelectuais, com essas atitudes, a política divide esses condenados e mantém uma parte dela a favor, alimentada pelas mentiras e promessas, como escudo de defesa.
            Nesse sentido, não é a critica ao fenômeno isolado, que as reencarnações de figuras exóticas que hora encantam-se pela “goiabeira”, ora pelo “pum de talco” e são noticiadas cotidianamente; é ao núcleo dirigente interno e externo que se deve dirigir as atenções e colocar-se em movimento para impedir que eles emanem as ordens  que autorizam os achaques, os golpes, a apropriação indevida das riquezas nacionais e aos limites da já encurralada liberdade individual.
                                                                                                                      Ademar Bogo  

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