domingo, 20 de janeiro de 2019

O APARELHAMENTO



            Há diferentes formas de conduzir-se individualmente pela história. O filósofo Kant nos premiou com a elaboração orientadora de dois imperativos condicionadores: o “categórico” e o “hipotético”. O primeiro funciona na intimidade do sujeito, nasce conosco como um atributo da natureza, como ocorre com a cor dos olhos e funciona como uma força capaz de nos orientar para o bem. Por isso, mesmo que estejamos sozinhos, tal qual acontece com os nossos olho, que podemos ver o que está ao nosso redor, podemos também manter os princípios morais porque eles são orientados pela razão.
O segundo imperativo é mais perigoso. Ele nos surpreende com a  rebeldia hipotética e nos leva a experimentar as sensações, dar vazão aos instintos e traçar planos benéficos e escabrosos; maquinar violências, abusos e praticar atos que nos emancipam como seres humanos ou nos condenam e desmoralizam vergonhosamente. Nesse sentido, os dois imperativos podem levar a confundir o que é o real com o ilusório ou aquilo que é moral com o imoral. É no controle deste imperativo que nos projetamos ou nos desgraçamos.
            Poderíamos aqui tecer amplos comentários sobre as revelações cotidianas da política sem rumo; da justiça sem pesos e medidas justas; os assédios e abusos em leitos de consultórios médicos transformados pela vontade dos machos, em quartos de motel e tantas outras expressões de um sistema destrutivo.
Essas expressões que, nos últimos tempos foram atribuídas à política para deslegitimar a forma partidária de organização, iniciou e ainda é alimentada pelo mercado. São práticas mesquinhas que sustentam as relações de troca levando quase sempre o vendedor iludir o comprador para que compre o produto, oferecendo-lhes “descontos” atrativos, prazos compensadores e juros supostamente favoráveis. O fiado comercial assemelha-se ao “débito de favor” cobrado na política. Portanto, em todas as relações que perdem a transparência, há por trás, intenções obscuras que sujeitam as pessoas às próprias relações que estabelecem, fazendo-as colaborar nas disputas por cargos, nas indicações para funções etc.
            Por ora, temos no tema das “ilusões políticas”, o motivo para um breve aprofundamento. No Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels de 1848, há um alerta dialético que leva a perceber que, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Logo, desde Heráclito sabemos que tudo flui e nada é estático, inclusive as certezas.
            Todos aqueles e aquelas que militaram a partir da década de 1980 para cá devem lembrar dos profundos debates estabelecidos e, por meio do estudo sobre a "teoria da organização política" foram compreendidos alguns princípios, dentre eles, que a organização partidária é fundamental para se pensar e efetuar as transformações sociais.
            Durante toda a década de 1980, podemos dizer, que as diretrizes políticas, embora em meio a posições diferenciadas, tinham como certo, a orientação clássica de que o partido é a força dirigente e as demais forças, motrizes, fundamentais e auxiliares, convergiam para, por meio de suas ações, fortalecerem a estratégia política.
            No final da década de 1980 com a queda do muro de Berlim, tendo como consequência, em prejuízo do bloco socialista a junção das duas “alemanhas”  e, logo em seguida, ter ruído a composição da histórica República Soviética, ganhou ainda mais força o pensamento de que o partido político não podia ter a supremacia sobre as demais forças sociais e que o “aparelhamento” dos sindicatos e dos movimentos sociais era um erro, pois, eles se portavam como “correia de transmissão”.
            De fato, para quem defendia verdadeiramente o socialismo havia uma batalha gigantesca pela frente a ser enfrentada no “mundo das ideias”. É vidente que um grupo significativo de militantes de esquerda, baniram o socialismo de suas mentes e rebaixaram o conteúdo das ideias aceitando o receituário reformista e as opiniões das Organizações Não Governamentais (ONGs) que induziram a crer que “os paradigmas” haviam mudado e, por isso, havia que se mudar também as referências organizativas, colocando nas referências conceituais, não a classe, mas gênero, o território, as raças, religiões; enfim, os “novos movimentos sociais” e não mais o partido político. Com a devida consideração e respeito, muitos equívocos e desvios necessitavam de correção, mas o corte na concepção cerebral feriria profundamente a direção estratégica.
            Surgiram então as novas linguagens, que feriram as formas de tratamento do sujeito determinado; de “companheiros e companheiras” passou-se para o sujeito indeterminado “todos e todas”; do conceito ofensivo do “imperialismo” para o conceito conciliatório da “globalização”, tornando-o parte do conteúdo das palavras de ordem expressas em manifestações e, surgiram as ondas como a do “Fórum Social Mundial” que, nas suas diversas versões priorizou a livre iniciativa das ideias; exposições liberais, colocando-o como um instrumento de articulação de entidades, movimentos e partidos políticos de todo o planeta. No entanto, por falta de diretrizes reais pouco saldo organizativo restou.
            O movimento das contradições, presente em todos os sentidos, contribui para as mudanças históricas. Para nós, nesse item específico, a dialética foi deveras vingativa porque, enquanto os movimentos sociais em seu amplo sentido eram “desaparelhados dos partidos”, expressando gloriosamente a autonomia política, como se estivem emancipando-se de algo perverso e repressor, os partidos políticos foram aparelhados pelo Estado e induzidos a valorizarem as disputas institucionais como tarefa única.
            No entanto, na medida em que alguns partidos políticos tiveram êxito no intento de chegar ao governo, como relata Platão no mito de Er, quando as almas voltavam para terra e passavam pelo rio Letes, com sede, bebiam a água e esqueciam o que tinham vivenciado no período vivido no outro mundo, assim fizeram as nossas entidades partidárias e movimentos sociais: esqueceram tudo e entregaram-se à governabilidade como quem se entrega a um amante apaixonado vindo a formar o “novo aparelhamento conjugal” na casa que viria a aprisioná-los.
            Não é necessário discutir os retrocessos políticos e as derrotas, mesmo as institucionais sofridas, mas é importante verificar se aquelas posições que defendiam o protagonismo dos “novos movimentos sociais”, autônomos dos partidos, surtiu efeito? Onde estão agora aqueles movimentos, autônomos do partido político para procederem a reação organizativa e conduzirem a sociedade a um consenso de que o totalitarismo usurpador de direitos sociais está equivocado? Parece que o papel dos movimentos não era “desaparelharem-se” do partido, mas exigir que ele fosse o instrumento dirigente para a transformação social e não um mero farol para iluminar o caminho das políticas públicas.
            Diante da situação em que os paridos políticos foram domesticados pelo Estado, que ora sobrevivem do Fundo Partidário e que prezam pelas disputas eleitorais, é de se acreditar que tal aparelhamento continue direcionando as suas práticas. Por sua vez, os movimentos que já não encontram governos para aparelharem-se e os partidos políticos disponíveis oferecem apenas o aparelhamento para fazerem as disputas eleitorais, que destino darão para as suas autonomias?
            É conveniente pensar em mudar de estrada, mas não abandonar a roda ou perder tempo em reinventá-la. Permanentemente as teses socialistas nos mostram a importância do Partido Político como sendo o instrumento de organização e condução da luta pela transformação social. O partido não deve ser uma entidade burocrática, mas “a parte consciente” da sociedade que se propõe a lutar em favor do todo. Dentro desta parte há setores responsáveis; dentre as responsabilidades há aquelas da formulação dos planos, dirigir e distribuir tarefas.
            As tarefas também compreendem as lutas específicas que são desenvolvidas pelos movimentos e entidades que se orientam pelas diretrizes conscientes, formando assim, uma totalidade de forças que compõe esta parte que luta a favor do todo.
            Enquanto não nascer este instrumento dirigente, as forças tenderão a torcer que os inimigos se equivoquem e se desmoralizem. Cabe um alerta, um governo civil desmoralizado pode se arrastar e, mesmo desprezado ir até o fim previsto; um governo militar desmoralizado tende a usar o seu atributo principal que é a força. Em quaisquer circunstâncias, os trabalhadores sempre souberam qual é o seu papel na História e, os mais experientes descobriram com os próprios passos que: “quem acorda cedo faz o amanhecer”.
                                                                                                           Ademar Bogo
                                                          

Nenhum comentário:

Postar um comentário