domingo, 26 de outubro de 2025

O PRESENTE DE PRESENTE

 

Duas famílias se revezavam no poder de Florença na Itália na entrada do século XVI: os Soderini e os Médici. Maquiavel era um fiel servidor de Piero di Tommazo Soderini, até 1512, quando foi derrubado do poder. Dali em diante passou a ser considerado um traidor, o que ele jurava não ser. Após ser preso e torturado, recolheu-se em um sítio próximo à cidade e lá montou a sua estratégia de cativar o “príncipe”.

Está na dedicatória do livro O príncipe, de Nicolau Maquiavel, enviado ao Magnifico Lorenzo de Médici, ao qual pretendia agradar para, além de deixar de ser perseguido, voltar a ocupar algum cargo no governo de Florença na Itália. “Os que desejam obter o favor de um príncipe costumam, por via de regra, presenteá-lo com aquilo que mais caro lhes é ou julgam mais agradar a ele. Daí vermos amiúde serem os príncipes brindados com cavalos, armas, lhamas de ouro, pedras preciosas e outras dádivas semelhantes, dignas de sua grandeza”.[1] Mais adiante dirá ele que havia optado por dar provas de sua submissão, doando “o conhecimento das ações dos grandes homens”. Essa geralmente tem sido a tradição dos povos moralmente fracos trocar a própria liberdade por algum benefício.

Estamos vivendo a iminência de sermos atacados pelos Estados Unidos de diferentes formas. As primeiras investidas, para encurtar a história, vieram como o golpe institucional desferido contra a presidente Dilma em 2016; depois todas as falcatruas jurídicas da Lava Jato; a eleição planejada de Bolsonaro e a tentativa de permanecer no poder, com o quebra-quebra no dia 8 de janeiro de 2023. De lá para cá, os Estados Unidos em franca desvantagem econômica com a China, vem intensificando as ameaças de controle da América Latina e do Caribe.

As elevadas taxas impostas ao Brasil sobre alguns produtos de exportação de menor interesse do governo imperial, e a maneira como o nosso governo respondeu, pareceu uma atitude coerente com quem luta para manter a ideologia da soberania em evidência. Por que dizemos que a manutenção da soberania é apenas ideológica e falsamente defendida? Basta observarmos simplificadamente, que encontraremos mais de 4 mil empresas norte-americanas atuando no Brasil; elas representam 34% dos investimentos externos. Logo, de nada adianta falar grosso sobre as tarifas de 50% dos produtos importados, quando temos um protecionismo, estabelecido pela Lei Kandir, de 01 de novembro de 1996, que isenta da cobrança de tributo do ICMS, os produtos e serviços exportados pelas empresas que funcionam em nosso território. Nesse sentido, com essa quantidade de empresas, o serviço de inteligência capaz de grampear os telefones, como fizera com a presidente Dilma no passado, a tese de que “o presidente Trump está mal-informado” é no mínimo ingênua.  

Por outro lado, está evidente que, a disputa entre China e Estados Unidos sobre o controle mundial do comércio e produção da riqueza, promove diferentes reações com métodos diferentes. Os chineses agem de forma diplomática e cooperativa, os norte-americanos com ameaças e violência. O cerco em formação contra a Venezuela e a Colômbia pelo Mar do Caribe, é a prova cabal de que, os interesses econômicos, principalmente no controle do petróleo, estão na base dessa reação.  

No caso brasileiro, a aparente centralidade no problema político e não no econômico, se deve à diferente estratégia de enfrentamento montada pelos Estados Unidos. Em primeiro lugar, porque, até aqui, nos duzentos anos de relações diplomáticas, nunca foi preciso disparar nenhum tiro para que os interesses ianques fossem satisfeitos. O petróleo cuja exploração iniciou com o lema de ser “nosso”, com a política de leilão dos blocos, as empresas estrangeiras disfarçam a participação por meio da formação de consórcios. Tudo feito dentro da lei sem provocar conflitos. Em segundo lugar, é o potencial que ainda temos em minérios que podem interessar também aos outros países. Na medida que o Brasil passou a compor os BRICs, feriu os interesses do império e, por isso, a reação. Logo, os Estados unidos de olho no futuro, querem o nosso presente de presente.

Nesse sentido, de algum modo, vale muito a defesa soberania política, porém, na medida que a soberania econômica deixa de existir, o país sofrerá um assemelhado “derrame cerebral”, cujas consequências se resume em poder apenas mover os membros do lado direito do corpo, os do lado esquerdo ficarão paralisados.

Por isso, acendem as luzes amarelas, quando começa ter um certo ufanismo com as reuniões de entendimento nas conversas entre os dois governos, isto porque, a relação desde o início não é de igualdade. Os Estados Unidos partem de uma vantagem ofensiva que é a imposição da tarifa de exportação de 50%, é o que popularmente se chama de “faca no pescoço”. Diante disso, lembremos do alerta maquiavélico. Se vamos para a conversa para “obter favores”, então levaremos aquilo que nos é mais importante: o petróleo, o lítio, o nióbio, o cobalto, o grafite, as terras raras e outros minérios necessários para fazer a economia norte-americana se recuperar; ou levamos conhecimentos, para dizer que está na hora do Brasil ser respeitado, e que, a nossa autoestima superou a síndrome de sermos eternos “vira-latas”, serviçais e submissos aos caprichos do império.

É hora da reação em bloco e de darmos o segundo grito de independência, em continuação das primeiras conquistas latino-americanas do século XIX, que, entre 1804 a 1830 os colonizadores europeus foram escorraçados de nosso continente. José Martí, Simon Bolívar, José Carlos Mariátegui e Carlos Marighella,  têm muito a nos dizer, se quisermos mandar o príncipe para o inferno com todas as suas imposições.     

                                                                       Ademar Bogo



[1] MAQUIAVELLI, Niccoló. O príncipe. Brasília: Senado Federal, 2016.

domingo, 12 de outubro de 2025

PRÊMIO AOS VIRA-LATAS


            O mês de outubro de todos os anos tornou-se uma referência para o anúncio das premiações do “Prêmio Nobel”, expresso em seis categorias: Química, Física, Literatura, Medicina, Economia e Paz. Os cinco primeiros possuem base científica e, o último puramente político.

            A origem de tais prêmios está vinculada ao inventor da dinamite, o sueco Alfred Nobel (1833-1896). Químico e inventor, deixou a sua riqueza para compor o prêmio Nobel. A influência para os inventos veio de seu pai que era engenheiro e construtor de pontes, edifícios e estradas de ferro, que suscitaram a necessidade de inovar as técnicas de detonação de rochas. Após várias tentativas, em 1863, Alfred, realizou a primeira detonação utilizando a nitroglicerina e, um ano depois, patenteou o invento. O nome dýnamis, vem do grego e quer dizer “poder”. Foi esse poder que mais tarde veio a perturbar o sono de Alfred Nobel quando viu a sua criação sendo usada para outros fins, inclusive para matar pessoas.

            O seu arrependimento pela violenta invenção, veio quando, em 1888, por ocasião da morte natural de seu irmão Ludvig, um jornal francês, confundindo ser ele o próprio Alfred, noticiou a sua passagem com a manchete “Morre o mercador da morte”.  Para impedir que essa identificação o mantivesse eternamente preso à rememoração do mal, resolveu doar a sua fortuna para aqueles que apresentassem todos os anos, invenções significativas para o bem.

            Feitos os esclarecimentos iniciais sobre a origem do Prêmio Nobel, embora tenha havido belas surpresas nas pessoas escolhidas e laureadas desde 1901, ele tem cada vez mais se tornado um instrumento de manipulação do capital. Se os inventos trazem benefícios para a humanidade, pouco importa, vale fortalecer a cada ano as tendências a serem implementadas que rendam altos lucros.

            O Prêmio Nobel da Paz foi, neste ano de 2025, entregue para Corina Maria Machado, uma figura da extrema-direita venezuelana que já tentou dar golpe de Estado, falsificar os resultados das eleições e continuar promovendo articulações para desestabilizar o governo da Venezuela, com bloqueios e punições econômicas contra o seu próprio país. Suas articulações além de isolar a Venezuela do mundo, colocou a cabeça do presidente Nicolas Maduro a um prêmio de U$ 50 milhões de dólares.

            O prêmio Nobel da Paz, deveria ser de fato para homenagear e reconhecer, personalidades ou grupos sociais que almejam e trabalham pela Paz e não o contrário. Sabemos que os interesses do imperialismo é apropriar-se do petróleo e dos minérios existentes em grandes quantidades na América do Sul, por isso precisa de governos submissos. Nesse sentido não faltam candidatos com “complexo de vira-latas” para ajudá-los.

            Nelson Rodrigues escreveu em 1958 em uma de suas crônicas esportivas, na qual expôs essa definição: “Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”.[1] Na verdade, não são os brasileiros, mas os governantes, empresários e políticos oportunistas, que antes mesmo de serem confrontados, acanham-se e rastejam diante do império para fazer-lhes as honras, entregando-lhes a o incenso, o ouro e a mirra, e tudo o que há no subsolo.

            A vergonhosa postura dos empresários do agronegócio diante da elevação das taxas de impostos de exportação, para os 15% dos produtos que eram levados para os Estados Unidos, é de abismar qualquer pessoa. Como se estivem perdendo todos os privilégios, os vendedores da pátria brasileira, ajoelharam-se diante de um bufão de cabelos loiros, pedindo clemência. Esqueceram de observar que no mundo já temos 8 bilhões de pessoas distribuídas em 195 países, que precisam se alimentar. Os Estados Unidos da América têm atualmente, 340 milhões de pessoas; qualquer comerciante astuto faria essa relação se quisesse continuar os seus negócios lucrativos e procuraria outros mercados. Mas o medo de ficarem malvistos e, pondo em destaque o título de verdadeiros “vira-latas”, sentaram-se sobre a cauda para mendigarem a redução de impostos.

            O “complexo de vira-latas”, nada tem a ver com o cachorro, mas com a regularidade da conduta política que, desde 7 de setembro de 1822, quando o entendimento entre pai e filho, mediante uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas, pagos à Portugal, com um empréstimo de 3 milhões da mesma moeda, tomados da Inglaterra, representou o preço de nossa independência. Se não fosse a resistência baiana, com destaque à bravura de três mulheres: Maria Quitéria, Maria Felipa e Joana Angélica, o grito do Ipiranga teria sido apenas um grito.

            Portanto, o capital faz a guerra para destruir tudo e depois se apresenta como o redentor para reconstruir. O retrato fiel desse comportamento podemos ver nas imagens das ruínas palestinas. Isto renderá bilhões de dólares para os capitalistas e, o próximo Prêmio Nobel de 2026, com certeza será dado a Donald Trump. Enquanto isso, os canhões se voltam para a Venezuela que está situada num ponto estratégico, próximo da Guiana e da Foz do Amazonas, onde estão situadas as maiores reservas de petróleo do mundo.

            Somado a isto, a presença da China, com o projeto da Ferrovia Bioceânica ou Corredor Ferroviário Atlântico-Pacífico, saindo de Ilhéus na Bahia, para chegar à cidade de Chancay a 70 quilômetros de Lima no Peru, completa o colar da Rota da Seda internacional deixando os Estados Unidos fora dessa articulação.

            Não poderá existir Paz no mundo enquanto a solidariedade entre os povos não se tornar um valor fundamental. Enquanto os assassinos premiam-se entre si, todo e qualquer movimento em direção a Paz, terá por trás, as altas somas financeiras lucrativas alcançadas. É preciso suplantar o “Complexo de vira-latas” presente nas esferas políticas e mostrar que soberania não significa liberdade de mercado, mas a autonomia de decisão para virar a cabeça para o lado que queremos ver o mundo em cada momento.

                                                                       Ademar Bogo



[1] RODRIGUES, Nelson. Complexo de vira-lata. https://vermelho.org.br/2014/06/12/nelson-rodrigues-e-o-complexo-de-vira-latas.

domingo, 5 de outubro de 2025

PREPARAR-SE PARA O ASCENSO


As gerações nascidas na primeira metade do século XX, conviveram com um conceito temeroso conhecido como “Guerra nas estrelas”. Essa estratégia passou a vigorar na área militar após as duas grandes guerras mundiais, quando o mundo terreno foi oportunamente repartido pelas potências mundiais, mas restava ainda conquistarem o mundo das estrelas.

Quase que repetindo as fantasias platônicas, o qual dividia o universo em dois mundos: o inteligível onde residia as ideias perfeitas e, o mundo sensível, terreno, no qual reproduzia-se as cópias, geralmente imperfeitas, porque as capacidades naturais eram sempre inferiores às habilidades dos deuses. A guerra nas estrelas, de algum modo, levou as ideias para o espaço. Muita tecnologia foi criada por esta concepção desbravadora de outros planetas, como também, ainda busca condições para habitá-los.

De outro modo, Aristóteles havia sido bem mais realista. Intuiu que existem dois mundos: o supralunar (desconhecido) e o sublunar, possível de ser conhecido, pois, abaixo da lua tudo era possível de ser conhecido. Foi neste segundo mundo que a estratégia da “guerra nas estrelas” se situou tecnologicamente, com a instalação de satélites, sondas, estações, foguetes e outros meios de vigilância, capazes de fazerem as nações mais fracas submeterem-se às demais. Este conceito de controle sublunar nos é mais compreensível, isto porque, as nações disputam o poder sobre esse espaço, enquanto se preparam para dominarem a parte superior do universo.

Se a “Guerra nas Estrelas” era uma intensa concorrência entre as potências para saber quem conseguiria levar a vida humana para lá, ainda deverá fazê-lo; porém, o olhar de cima, por intermédio de lentes, tornou-se perigoso para elas no mundo sublunar. As localizações dos alvos são precisas e certeiras, pois, a mira governada por raios laser chega primeiro do que as balas e marca os pontos a serem perfurados. No entanto, há uma fragilidade nesse mundo terreno; da mesma forma que acontece entre as árvores, a concorrência não se dá apenas entre aquelas árvores que têm a copa mais alta, mas também as raízes mais profundas, para sustentarem-se quando os vendavais violentam a floresta. Os de cima, ainda moram aqui embaixo e não é difícil de localizar os seus investimentos.

Nas últimas décadas,  o conceito de “Guerra Fria” tornou-se coisa do passado e, os combates voltaram a ser com fogo e chumbo. Com a queda da União Soviética, os imperialistas imaginaram que o mundo havia se tornado unipolar, e o capitalismo estava salvo das ameaças comunistas. Ledo engano, diante da autossuficiência dos fortes, os fracos ousaram desafiá-los com as práticas mais simples: solucionar os problemas socioeconômicos sobre a terra. Foi então que algumas economias cresceram mais do que o esperado. Os mercados passaram a ser inundados pelas mercadorias baratas que levaram à falência as fábricas locais. O próprio capital excedente, ao invés de investir na produção, transmutou-se para a especulação, levando o império dos Estados Unidos, principalmente, a manter as armas apontadas contra os múltiplos inimigos, porém, sem capacidade para produzir a própria munição.  

De um ano para outro, após dois séculos de exploração imperialista, os fracos e humilhados levantaram a cabeça: México, Colômbia, Venezuela e Brasil, no coração das américas, começaram a dizer “não”, aos Estados Unidos, e prometem aliarem-se com outras referências, como a China e a Rússia, formando outro bloco alheio ao G20, chamado inicialmente de BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), mas outras nações também se somam e estreitam as relações.

Embora esse ascenso seja institucional ele cumpre o papel de encorajar as lutas locais e continentais, a atacarem no mundo terreno, onde vivem e trabalham os mortais, todos os vestígios de intervenção. Com os alvos ampliados, as tecnologias aéreas perderão a eficiência, porque será a força física contra a tecnologia armamentista e a inteligência humana, acima da inteligência artificial, que comandarão o planejamento da vida sobre a terra.

Fora as contradições da globalização que criou as condições para o revigoramento do internacionalismo e s solidariedade entre os povos. A defesa da é demonstração vital de que uma parte da humanidade continua ativa e dispostas a tomar em suas mãos o destino do planeta. Os clamores por justiça ecoam pelos ares e tocam os ouvidos das populações exploradas, para que reajam contra os criadores da miséria, da violência e da dominação. É com coragem e unidade que as classes dominantes, em qualquer parte do mundo, serão definitivamente dominadas.

É preciso preparar-se para o ascenso das lutas unitárias; elas serão locais mas de alcance universal, porque a causa será comum. Os impérios fracassam quando perdem o controle sobre os povos. Nenhuma tecnologia será capaz de impor a obediência total, quando, por revolta ou por consciência as pessoas decidirem conquistar a própria liberdade.

                                                                       Ademar Bogo