domingo, 21 de setembro de 2025

SOBERANIA PARLAMENTAR


                Embora a Inglaterra tenha na modernidade produzido grandes filósofos como Thomas Hobbes (1588-1679), ferrenho defensor do absolutismo, no qual reina o poder do soberano, foi o país que por primeiro implantou a monarquia parlamentarista, consolidada em 1688, com a Revolução Gloriosa e assim vigora até os nossos dias.

                Não se trata aqui de defender aquela forma de governo esclerosada, importa é fazermos uma breve reflexão sobre a ideologia da democracia representativa, a qual, superficialmente, combina irmanação dos três poderes, que constituem a representação da ordem no mundo civilizado.

                Hobbes produziu uma ideia no livro: Diálogo entre um filósofo e um jurista, que nos ajuda entender como funciona a mente dos legisladores. “O senhor gostaria que os homens alegassem mutuamente como lei sua razão particular? Entre os homens não existe uma razão universal sobre a qual há acordo dentro da nação, além daquele que tem o poder soberano”.[1]Isso é tudo. Quem pode usar a razão para fazer leis ou revogá-las, é somente o soberano, os demais cidadãos usam a razão apenas para usufruírem o que está ao alcance de suas mãos.

                Se entre os homens somente o soberano tem razão universal, significa que por tê-la, está acima dos homens comuns e, por isso, mesmo sendo pego pela lei por ele elaborada, estará blindado. Assemelha-se esse fenômeno ao da invenção da bomba de gás lacrimogênio, pelos Norte americanos  Ben Corson e Roger Stoughton,  em 1928,para maltratar as multidões, enquanto para aquele que a lança  por estar usando a proteção da máscara antigás, nada acontece.

                No Brasil, estamos caminhando para o absolutismo do parlamento. Leis  incômodas são substituídas pelos Projetos de Emenda Constitucional – PEC, enquanto a sociedade assiste o desmonte de sua Constituição.  A mais recente invenção é a PEC da “blindagem”. Em síntese é uma lei que impede a abertura de qualquer processo contra um parlamentar, salvo se o próprio Congresso autorizar. Na verdade, como eleitores já sabíamos que, sempre após eleito, o político cria a sua própria autonomia, porém, não sabíamos que o voto tem o poder de elevar os eleitos acima das próprias leis que eles elaboram.

                Se a moda pegar, o sacerdote e o pastor farão as suas leis para não serem pegos na pedofilia; o artista precaver-se-á legalmente para quando beijar tecnicamente, não passar ser visto o ato como um assédio; o fazendeiro, antes de pulverizar o agrotóxico, prevenir-se-á com uma lei de não contaminação; o juiz quando vender sentenças; o jogador de futebol envolvido em falcatruas nas loterias, todos formularão as suas garantias.

                Os escândalos entram para a normalidade porque a barbárie já se normalizou. O banditismo político tornou-se incontrolável. A eticidade, segundo o filósofo Hegel, que  deveria estar acima do direito e da moral, para garantir que a liberdade individual esteja submetida ao dever e a vontade social, não está mais. Vemos mesmo é o seu contrário. O indivíduo acostumado com o crime, impõem aos cidadãos de bem, as suas projeções legais. Assim funciona o mundo paralelo: o gangster, chefe do crime organizado, elabora as normas que lhes servem de poder pessoal.

                Ainda não vimos tudo. Esses setores marginais, com vinculação orgânica nas religiões, facções organizadas, parlamento, grande parte das forças policiais, capital especulativo, setores produtivos, como o agronegócio, as mineradoras etc., já se tornaram centros de articulação política. O crime não teme a lei. Esta última se vê como um cão acorrentado sendo caçado pela onça. Quando algumas lições podem ser dadas, o Congresso anistia, reduz as penas e tudo segue sendo a encenação dos facínoras fascinados, que acham terem mais razão do que os demais seres racionais.

                O capitalismo decadente revela as suas contradições em todas as dimensões. O Estado e o Direito, vistos na teoria como pilares da manutenção da liberdade, garantidores aos cidadãos do direito de ir e vir, tornaram-se reféns de grupos de malfeitores, que se protegem de todas as maneiras, para não serem surpreendidos em sua travessuras.

                Mais problemático do que a blindagem é a conivência e, pior que esta é a imobilidade diante da barbárie política. O poeta Paulo Leminski, em seu poema “Bem no fundo”, interpretou o desejo universal à inanição: “No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto”. Se veremos solução, é para os problemas deles.

                Portanto, não basta lamentar-se, é preciso proibir de enganar-se que das urnas poderão nascer parlamentares mais descentes. A política será moralizada quando o parlamentar, antes de votar qualquer decreto, precisar consultar e ser autorizado a opinar, pelos eleitores que lhe deram o mandato.   

                A luta continua.

                                                                                                              Ademar Bogo



[1] HOBBES, Thomas. Diálogo entre um filósofo e um jurista. São Paulo: Landy, 2004, p. 54

domingo, 14 de setembro de 2025

JULGAMENTO E JUSTIÇA


Há momentos importantes na vida de um cidadão ou na história de um país, cujas marcas ficam registradas para sempre. É o caso de um julgamento. Os olhos se voltam para o tribunal para vislumbrarem o produto que sairá de lá, com o nome de condenação ou absolvição, daí surgem as expressões, nos juízos particulares, se os resultados foram justos ou injustos.

Aristóteles foi um dos primeiros filósofos gregos a teorizar sobre a justiça.Ora, "justiça" e "injustiça" parecem ser termos ambíguos, mas, como os seus diferentes significados se aproximam uns dos outros, a ambiguidade escapa à atenção e não é evidente como, por comparação, nos casos em que os significados se afastam muito um do outro (...)”.[1] Talvez esteja nisso a chave para entendermos essa confusão, quando não sabemos discernir se o réu é culpado ou inocente.

O filósofo preocupa-se em situar a materialidade dos atos, mas, ao deparar-se com os diversos significados para “um homem injusto” que, muitas vezes não conseguimos localizar em que ponto está a sua culpa. Para facilitar o entendimento, voltou-se Aristóteles para os comparativos do “homem sem lei” e, o “homem respeitador da lei”. Acontece que entre o réu e a condenação, estão as argumentações para prendê-lo ou soltá-lo das malhas da lei.

As vezes as expectativas são maiores do que as evidências e com isso há desequilíbrio na aplicação dos pesos e das medidas, por isso, os julgamentos as vezes parecem ser justos, outras vezes injustos. As coisas se agravam ainda mais quando adentramos para o campo dos desejos, também ambíguos, no sentido de “fazer justiça” ou “fazer vingança”.

Entre a justiça e a vingança não há parede divisória, apenas duas linhas paralelas, com cores diferentes, marcam as satisfações e insatisfações. Satisfeitos com o resultado do julgamento, nem sempre nutrimos o sentimento de justiça; haverá ainda o seguimento de onde e como o réu cumprirá a sentença e progredirá no cumprimento pena. Já que o cidadão não pode interferir nas decisões do juiz, ele faz denúncias e exigências para que tudo seja cumprido nas piores condições possíveis, com as mais perversas companhias, vistas como instrumentos da vingança e acompanhada de todas as maledicências para que de tudo de ruim lhe aconteça do lado de dentro das grades.

Assim é a civilização: A lei acima de todos. No entanto, há situações que acima das leis estão aqueles que as elaboram, isto porque, como um pai nunca imagina que será punido pelo filho, supostamente, a criação de uma lei jamais se voltaria contra o seu criador. Mas pode vir a ocorrer. Quando isso acontece, como a ambiguidade entre o veneno e o antídoto: os fabricantes mudam a fórmula, um fica sendo a doença e o outro o remédio. Por isso surgem os pedidos de anistia que somente podem ser realizados com a aprovação de uma lei que anula os crimes imputados por outras leis.

A imunidade parlamentar é um exemplo de que há pessoas acima das leis que não podem alcança-lo enquanto durar o seu mandato e, a impunibilidade do juiz que faz a interpretação das leis segundo os seus interesses. Não há limites hermenêuticos, mesmo quando os atos falam por si mesmos, há a possibilidade de assegurar aos culpados uma mentirosa inocência.

Por outro lado, a justiça e a política são acompanhadas da coragem e do medo. No Brasil, logo após a abertura política de 1985, houve a campanha para presidente da republica em 1989 e, o Partido dos Trabalhadores hegemonizou as mobilizações com o slogan: “Sem medo de ser feliz”. Buscavam os seus ideólogos espantarem o fantasma do comunismo que as forças responsáveis pela ditadura militar haviam criado. Quando em 2002, aconteceu a primeira vitória eleitoral para governar o país, a afirmação verbal foi: “A esperança venceu o medo”.

O que chama a atenção não é o resultado alcançado, mas o “medo” que aparece nos dois momentos históricos decisivos. Por isso, se justificava a intocabilidade dos militares. Os ditadores e torturados responsáveis por centenas de mortes, torturas, censuras, perseguições etc., vivem ainda ou morreram em suas casas, com soldos e vantagens que se estendem para os seus familiares, privilégios que nenhum trabalhador brasileiro possui.

Nesse último onze de setembro de 2025, enquanto rememoramos os 52 anos da morte de Salvador Allende, vítima do golpe militar chileno em 1973; no Brasil assistimos à condenação de um grupo de golpistas que atentaram contra os resíduos de democracia política em 8 de janeiro de 2023. É evidente que isto é muito pouco em relação a tudo o que as lutas de resistência já passaram e sofreram, pela violência praticada pelas intervenções militares contra elas. De algum modo, só para citar alguns: Zumbi dos Palmares morto pelas forças oficiais em 20 de novembro de 1695; Antônio Conselheiro e os mortos de Canudos em 1897; Carlos Marighella (1969), Carlos Lamarca (1971) e todos os guerrilheiras e guerrilheiras que organizados enfrentaram a ditadura militar de 1964, nesse dia também foram lembrados.

O pouco se torna muito quando se ampliam os resultados. Se algo de bom ocorreu com a condenação dos golpistas, foi que “o medo venceu o medo”. Agora é possível dizer que é possível. Mesmo que tudo continue como está, um passo adiante foi dado, frente ao fantasma militar e o poder do imperialismo que, unidos, construíram o que de pior pode existir contra uma nação para que ela seja soberana, que é o medo de se insurgir.

Por tudo isso, podemos dizer que houve julgamento, mas a justiça ainda não aconteceu. O sofrimento dos povos originários massacrados; dos negros escravizados e mortos; dos pobres e trabalhadores reprimidos, presos e torturados, são todos crimes cometidos pelo braço jurídico e a mão armada dos Estado brasileiro. Para que a justiça verdadeiramente seja feita, precisamos eliminar a principal ambiguidade composta pela contradição entre explorador e explorado, para isso é preciso que o próximo tribunal seja popular, instalado nos campos, nas fábricas, nos serviços, praças, ruas e favelas para nele condenarmos, a desigualdade social, a propriedade privada, a exploração do capital e o poder centralizado do Estado. Nesse sentido, a luta não terminou, aliás, ela apenas começou.

                                                                       Ademar Bogo



[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 12