Os dias chegam e passam; surgem e desaparecem como os
números no calendário na parede riscados com um X. Deixam e levam matérias e
sensações. Eles mostram que a morte, apesar espertalhona, age de bom senso.
Quando quer, sem pressa, rodeia e instiga o convidado a se preparar. Permite
até proceder certas despedidas que marcam os semelhantes, futuros candidatos a
uma vaga na dianteira dos próximos funerais. Mas, o que para os vivos a morte é
sempre um fim, para ela é apenas o início da passagem para eternidade.
Eternos são o tempo e o infinito. Estes, como dois irmãos,
tudo absorvem e consomem. Nada escapa sem ter com eles contatos rápidos ou
duradouros. A vivência é medida pela quantidade de tempo de cada existência e,
a infinitude, presas às coisas que ficam como imanência nas consciências. Só existe
essa maneira de ficar quando se tem de partir: enfrentar o esquecimento com
bons exemplos.
O filósofo Nietzsche deu destaque à vida como quando
chega o meio-dia, que aparece para quem teve uma tempestuosa manhã, por isso, a
vontade tende para um repouso que pode durar meses e anos. Assim fica o sujeito
no silêncio a observar e a ouvir os sons sob o Sol a pino, com o coração parado,
mas o olhar vivo, como se fosse uma morte de olhos abertos. Por isso, ele vê o
que nunca viu, tudo iluminado e se sente feliz. “Enfim o vento se ergue nas
árvores, o meio-dia passou, a vida o arrebata novamente para si, a vida de
olhos cegos, atrás da qual se precipita seu cortejo: desejo, engano,
esquecimento, fruição, aniquilação, transitoriedade”.[1] Assim vem a tarde e,
podemos dizer, a longa noite memorável que transita para o outro dia.
O filósofo Homero ao falar de Aquiles na transitoriedade
da Guerra de Tróia, nos seus 25 anos, quase chegando ao “meio-dia da vida”,
declarou a obrigação de fazer a escolha do próprio destino, em sua última
conversa com a mãe. Antes, logo ao nascer, ela havia tentado imortalizá-lo
jogando-o em uma fogueira, mas foi salvo por Peleu seu pai. Na segunda tentativa
ela foi banhá-lo no Mar seguro pelo calcanhar, que, por não o tê-lo molhado,
ficou ali a sua vulnerabilidade, local onde Paris, príncipe de Tróia, acertou a
flechada. Diante das duas alternativas, teve o jovem que tomar a decisão: (...) um destino dúplice fadou-me à
morte como termo. Fico e luto em Troia:/ não haverá retorno para mim, só glória
eterna; volto ao lar, à cara terra pátria: perco essa glória excelsa, ganho
longa vida; tão cedo não me assalta a morte com seu termo.” (Ilíada, IX,
411-16).
Sempre tomamos a morte como perda. Mas porque perdemos se
ficam os feitos como herança? No fundo a morte não leva, mas fixa ou marca o
dia da passagem do imediato para o eterno. A eternidade, antes que alguém
confunda com o Céu, é o relembrar de uma palavra dita, uma página escrita, um
ato de bravura, uma escultura, um exemplo ou até mesmo uma árvore plantada. O
dilema de Aquiles era reduzir-se a uma vida sem sentido ou doar-se pela causa
gloriosa da vitória. Morrer tristonho e esvaziado ou ter uma bela morte marcada
com uma longa vida.
Sendo assim, morre um papa, elege-se um sucessor
comprometido ou não, depende de como os interesses religiosos são confrontados.
Terá ele o seu pontificado já no entardecer da existência. Assim, o papa é
feito depois de eleito. Quando ainda é cardeal, tem destaque, mas nada se
compara com a projeção recebida após a aprovação. A fumaça branca que anuncia
também expande a harmonia e a natural afetividade. Quando, pela primeira vez
aparece paramentado, já é aplaudido e aclamado. Na política, um mandato é o
oposto de um papado. O governante pode ser benquisto ou malvisto tem a lei a
seu favor para governar. No entanto, uma liderança se constrói ao longo de uma
vida. Desde manhã até o entardecer, há de ser militante. Um líder é forjado nos
conflitos e nas contradições que enfrenta, por isso a consciência é um parâmetro
obrigatório.
Os tempos ainda estão bons para escolher um bom Papa, mas
ruins para projetar líderes vigorosos e virtuosos. A diferença está em que, na
religião basta ter coerência, mas na política é preciso ter decência. A
escassez de líderes vem dos péssimos cultivos marcados pelos encantamentos ou
deslumbramentos que a luminosidade negativa não deixa mais formar consciências
combativas.
O
Papa Francisco e o Pepe Mujica viveram para expandir e combater. Abraçarem paciência
a bela morte, com uma carga de feitos expostos como herança. Não deixaram
riquezas, apenas sensibilidade estética e delicadeza. Esses homens delicados foram
sensibilizados pelas dores do mundo, que precisam ser saradas e superadas.
Mujica era um florista, um verdadeiro comunista da beleza.
Antes de embater-se com a brutalidade da política, cultivou a estética das cores,
os perfumes e os sabores. Depois, foi preso e encarcerado por catorze anos. Na
solitária obedeceu a repressão, como Jacó que serviu Labão por sete anos para
obter o direito de se casar com Raquel mas viu com surpresa quando o sogro o
enganou e o fez casar-se com Lia, obrigando-o a trabalhar outros sete anos para
tê-la, Pepe fez o mesmo para alcançar a liberdade. A escravidão como também a
prisão, não poderiam destruir seres sensíveis, sonhadores e superiores dos
seres normais.
As ditaduras sanguinárias na Argentina e no Uruguai nas
décadas de 1970 e 1980, forjaram as duas personalidades autênticas e
comprometidas. Eternos serão na terra pela grandeza de suas intensidades. Como
Aquiles, eles também estavam um pouco acima do senso comum dos seres humanizados.
Ademar
Bogo
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Humano
demasiadamente humano. Sçao Paulo: Companhia das Letras, 2008, §308.