domingo, 18 de maio de 2025

O PAPA E O PEPE

                      

            Os dias chegam e passam; surgem e desaparecem como os números no calendário na parede riscados com um X. Deixam e levam matérias e sensações. Eles mostram que a morte, apesar espertalhona, age de bom senso. Quando quer, sem pressa, rodeia e instiga o convidado a se preparar. Permite até proceder certas despedidas que marcam os semelhantes, futuros candidatos a uma vaga na dianteira dos próximos funerais. Mas, o que para os vivos a morte é sempre um fim, para ela é apenas o início da passagem para eternidade.

            Eternos são o tempo e o infinito. Estes, como dois irmãos, tudo absorvem e consomem. Nada escapa sem ter com eles contatos rápidos ou duradouros. A vivência é medida pela quantidade de tempo de cada existência e, a infinitude, presas às coisas que ficam como imanência nas consciências. Só existe essa maneira de ficar quando se tem de partir: enfrentar o esquecimento com bons exemplos.  

            O filósofo Nietzsche deu destaque à vida como quando chega o meio-dia, que aparece para quem teve uma tempestuosa manhã, por isso, a vontade tende para um repouso que pode durar meses e anos. Assim fica o sujeito no silêncio a observar e a ouvir os sons sob o Sol a pino, com o coração parado, mas o olhar vivo, como se fosse uma morte de olhos abertos. Por isso, ele vê o que nunca viu, tudo iluminado e se sente feliz. “Enfim o vento se ergue nas árvores, o meio-dia passou, a vida o arrebata novamente para si, a vida de olhos cegos, atrás da qual se precipita seu cortejo: desejo, engano, esquecimento, fruição, aniquilação, transitoriedade”.[1] Assim vem a tarde e, podemos dizer, a longa noite memorável que transita para o outro dia.

            O filósofo Homero ao falar de Aquiles na transitoriedade da Guerra de Tróia, nos seus 25 anos, quase chegando ao “meio-dia da vida”, declarou a obrigação de fazer a escolha do próprio destino, em sua última conversa com a mãe. Antes, logo ao nascer, ela havia tentado imortalizá-lo jogando-o em uma fogueira, mas foi salvo por Peleu seu pai. Na segunda tentativa ela foi banhá-lo no Mar seguro pelo calcanhar, que, por não o tê-lo molhado, ficou ali a sua vulnerabilidade, local onde Paris, príncipe de Tróia, acertou a flechada. Diante das duas alternativas, teve o jovem que tomar a decisão: (...) um destino dúplice fadou-me à morte como termo. Fico e luto em Troia:/ não haverá retorno para mim, só glória eterna; volto ao lar, à cara terra pátria: perco essa glória excelsa, ganho longa vida; tão cedo não me assalta a morte com seu termo.” (Ilíada, IX, 411-16).

            Sempre tomamos a morte como perda. Mas porque perdemos se ficam os feitos como herança? No fundo a morte não leva, mas fixa ou marca o dia da passagem do imediato para o eterno. A eternidade, antes que alguém confunda com o Céu, é o relembrar de uma palavra dita, uma página escrita, um ato de bravura, uma escultura, um exemplo ou até mesmo uma árvore plantada. O dilema de Aquiles era reduzir-se a uma vida sem sentido ou doar-se pela causa gloriosa da vitória. Morrer tristonho e esvaziado ou ter uma bela morte marcada com uma longa vida.

            Sendo assim, morre um papa, elege-se um sucessor comprometido ou não, depende de como os interesses religiosos são confrontados. Terá ele o seu pontificado já no entardecer da existência. Assim, o papa é feito depois de eleito. Quando ainda é cardeal, tem destaque, mas nada se compara com a projeção recebida após a aprovação. A fumaça branca que anuncia também expande a harmonia e a natural afetividade. Quando, pela primeira vez aparece paramentado, já é aplaudido e aclamado. Na política, um mandato é o oposto de um papado. O governante pode ser benquisto ou malvisto tem a lei a seu favor para governar. No entanto, uma liderança se constrói ao longo de uma vida. Desde manhã até o entardecer, há de ser militante. Um líder é forjado nos conflitos e nas contradições que enfrenta, por isso a consciência é um parâmetro obrigatório.  

            Os tempos ainda estão bons para escolher um bom Papa, mas ruins para projetar líderes vigorosos e virtuosos. A diferença está em que, na religião basta ter coerência, mas na política é preciso ter decência. A escassez de líderes vem dos péssimos cultivos marcados pelos encantamentos ou deslumbramentos que a luminosidade negativa não deixa mais formar consciências combativas.

O Papa Francisco e o Pepe Mujica viveram para expandir e combater. Abraçarem paciência a bela morte, com uma carga de feitos expostos como herança. Não deixaram riquezas, apenas sensibilidade estética e delicadeza. Esses homens delicados foram sensibilizados pelas dores do mundo, que precisam ser saradas e superadas.

            Mujica era um florista, um verdadeiro comunista da beleza. Antes de embater-se com a brutalidade da política, cultivou a estética das cores, os perfumes e os sabores. Depois, foi preso e encarcerado por catorze anos. Na solitária obedeceu a repressão, como Jacó que serviu Labão por sete anos para obter o direito de se casar com Raquel mas viu com surpresa quando o sogro o enganou e o fez casar-se com Lia, obrigando-o a trabalhar outros sete anos para tê-la, Pepe fez o mesmo para alcançar a liberdade. A escravidão como também a prisão, não poderiam destruir seres sensíveis, sonhadores e superiores dos seres normais.

            As ditaduras sanguinárias na Argentina e no Uruguai nas décadas de 1970 e 1980, forjaram as duas personalidades autênticas e comprometidas. Eternos serão na terra pela grandeza de suas intensidades. Como Aquiles, eles também estavam um pouco acima do senso comum dos seres humanizados.

                                                                                               Ademar Bogo



[1] NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiadamente humano. Sçao Paulo: Companhia das Letras, 2008, §308.

domingo, 11 de maio de 2025

COMBATER O SUPREMACISMO


            Ao completarem-se 80 anos do final da Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazismo, apesar da euforia, as comemorações ainda acontecem com desfiles militares, tanques e armas de alta precisão nas ruas, para mostrarem que o arsenal bélico retrata, por um lado, a civilização como inimiga de si mesma e, por outro lado, que os Estados estão submetidos a duas vontades: a primeira denominada “armamentismo” e, a segunda de “financismo”.

            Ao tomarmos o conceito de “civilização” como referência de bem, imaginamos o percurso da humanidade como uma ordem verdadeiramente capaz de implementar o respeito mútuo entre as nações, Estados e etnias. No entanto, quando recorremos aos livros vemos que desde o surgimento na Idade Antiga, quando a reunião de grupos humanos no Egito e na Mesopotâmia e, em outros lugares, deixou para trás a pré-história, pois, além da agricultura, da vivência grupal e a domesticação de animais, a descoberta do fogo, da escrita etc., fez surgir, a 4 mil antes de Cristo, a primeira e mais antiga demonstração de incivilidade, o escravismo. Este, após mil anos de feudalismo, ressurgiu, com o colonialismo, como uma forma de produção para expandir o produtivismo no capitalismo e, neste, apesar de todos os avanços, contando desde a antiguidade até 1945, quando a desumanização ganhou o nome de “Nazismo”, somaram-se quase 6 mil anos de supremacismo, com o qual, grupos, classes, etnias, Estados, sistemas, empresas ou indivíduos, se acharam superiores, com direito de subjugar os “inferiores”.

            Sem fortalecermos o pessimismo e a desesperança, comparemos os princípios do escravismo, do colonialismo e do nazismo, e veremos que, na essência, todos eles prezam pela supremacia e a dominação de territórios, grupos, povos e pessoas; controle cultural, das riquezas e imposição do totalitarismo como ordem geral.

            Embora os livros façam os recortes históricos e procedam certas separações, como a que estabelece  o surgimento do colonialismo no século XV, não ligam o surgimento do imperialismo no século XIX, o nazismo no século XX, o sionismo no século XXI e, não adianta querer incluir nessa sequência outros ismos (socialismo, comunismo e internacionalismo) para dizer que todas as expressões possuem o mesmo teor, porque se trata verdadeiramente de autodefesa dos povos e nações. Sem essas resistências e tentativas de superações, a humanidade estaria ainda mais subordinada às vontades da minoria intransigente.

                Nesse sentido é importante perceber que não importa se, em certos momentos as expressões de dominação tenham alcance universal e, em outros, apareça com acentuações locais. Consideremos que a perversidade que gera a dor física, produzida por maus tratos, provoca as mesmas sensações em seres vivos que sofrem em qualquer parte do mundo. Se tomarmos a civilização ea compararmos com um rio caudaloso, cuja nascente estaria no início da humanidade e, se tudo o que foi feito tivesse ocorrido dentro de suas margens, qual seria a cor e que gosto teria a sua água? Poderíamos bebê-la com as conchas das mãos, ou nem sequer tocá-la?

            O filósofo fundador do ceticismo se chamava Pirro de Elis (360-270 a.C ). Ele defendeu que jamais podemos chegar a conhecer as coisas, pois, podemos ter apenas opiniões sobre elas, por isso seria impossível conhecê-las, ainda mais, porque, cada cabeça têm as suas próprias imaginações. No entanto, ele ofereceu um roteiro baseado em três perguntas para pensarmos sobre a realidade: O que são as coisas? Como nos relacionamos com elas? E, quais devem ser as nossas atitudes?

            Há, sem dúvida grandes descobertas favoráveis ao bem-estar e, apesar das desigualdades, certos avanços civilizatórios são acessíveis a ampla maioria das pessoas, como a anestesia, os antibióticos e as vacinas. No entanto, as duas coisas que perpassaram a história e impedem a convivência respeitosa, estão relacionadas aos domínios da riqueza e do poder.  Essas duas irmandades, como a água cor de sangue do caudaloso rio, atraem e confundem os desavisados que facilmente se contaminam e deliram expressando palavras como: progresso, desenvolvimento, produção de riqueza, crescimento econômico, emprego e salário justo. Na verdade, o que vemos é a perpetuação da miséria e do sofrimento. 

            Se, com certo alívio relembra-se o final da Segunda Guerra Mundial em 1945, de lá para cá foram desencadeados 180 conflitos entre nações e, diversos estão em andamento, significando que a palavra Paz é apenas uma expressão demagógica na boca dos produtores de armas e especuladores das finanças dos países, obrigados a se endividarem emitindo títulos  para financiar o capital especulativo.

            Diante disso, o que sempre se ousou chamar de “povos civilizados”, são os que mais promoveram e promovem a violência. A Comunidade Econômica Europeia, tida como berço da civilização, ameaça investir 800 bilhões de Euros, ou cerca de 5 trilhões de reais, em armamentos para garantir pelo menos algum pouco da supremacia que ainda lhe resta.

            Enquanto a humanidade apenas assiste, os exploradores do planeta continuam conduzindo a civilização com os seus próprios interesses. É  preciso universalizar as reações e tomar o controle do destino da humanidade descivilizando o que é tido negativamente como civilizado e, elevar, pela desobediência civil a capacidade de combater o supremacismo em todos os níveis, para humanizar a humanidade.

                                                                                   Ademar Bogo

 

              

domingo, 4 de maio de 2025

O FIASCO DO IMPÉRIO


            Costumamos chamar de “fiasco” um fracasso ou um desastre propositalmente provocado, justamente porque as coisas não saem de acordo como planejadas. O filósofo Nietzsche, chamou de “tragédia” e “fracasso” tais infortúnios. Para ele o estado em que fazemos o mal é raramente agradável como quando fazemos o bem, e isso é um sinal de falta poder, por isso “(...) traz consigo novos perigos e incertezas quanto ao poder que possuímos e turva nosso horizonte com perspectivas de vingança, escárnio, punição, fracasso”.[1]

            Tivemos a impressão nesses primeiros meses de 2025, que no coração e na mente do império norte-americano, as frustrações avançaram tornando-se perigosos fiascos, tendo por companhia, a vergonha, a vingança, o escárnio e o fracasso. Isso se deve ao reducionismo cada vez maior do controle do poder de um grupo minoritário, caprichoso, elitista e totalitário; embora apresente-se como exemplo de democracia mundial. Eric Fromm (1900-1980), filósofo e psicanalista alemão, ao tratar do Medo à liberdade, chegou ao entendimento que: “O único critério para a concretização da liberdade é saber se o indivíduo participa ou não da determinação de sua vida e de sua sociedade, e isso não apenas do ato formal de votar, porém em sua atividade diária, em seu trabalho e em suas relações com outras pessoas”.[2]

Quando tememos a própria liberdade não praticamos o exercício da participação; revivemos as sensações de perigos constantes em todos os países capitalistas, cujo poder do capital obriga os governantes a usarem, desde cedo o totalitarismo ou a subordinarem-se aos interesses mesquinhos das elites dominantes. Um golpe de Estado, na atualidade, nasce e se consuma com tamanha facilidade que é de fazer inveja as ditaduras do passado. As ideias acostumam-se a transportar o medo para o campo das ameaças, com ou sem fundamento. Quando levadas a sério, as ameaças, causam efeitos danosos, quando não alcançam a realização, para a nossa sorte, tornam-se fiascos. É disso que falaremos. Nos Estados Unidos da América, os eleitores que votaram “sem medo” e venceram, recebendo como prêmio a anistia pela anterior tentativa de golpe de Estado,  aos poucos vão se dando conta que a força do fôlego do dragão para soprar as chamas sobre os inimigos externos, não passa de uma série de bravatas, mentiras e fiascos produzidos pelas big Techs e por um presidente alucinado; por isso, as chamas que deveriam queimar à distância, como o xixi do Tio San, não vão além do bico dos próprios sapatos. Daí o medo de ter que arcar com as consequências pela escolha malfeita, é cada vez mais crescente.  

A sinuosidade na escolha dos inimigos converteu o fiasco em escárnio, pois, oscilou entre a guerra na Ucrânia, a dominação da Palestina; as anexações do Canadá e da Groelândia; na elevação vergonhosa das taxas, tornando inviável a importação de produtos chineses, dentre outras medidas as únicas duas que foram vitoriosas se referem as deportações de alguns milhares de imigrantes ilegais e a mudança de no do Canal do Panamá e, para completar redução, termina agora, no início do mês de maio, conforme noticiam alguns jornais, com o envio de um emissário ao Brasil, para estudar punições ao Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Ou seja, aquilo que parecia ser uma guerra nuclear está acabando numa simples tentativa do impedimento de um ministro. O lado positivo desse intento é a declaração de que o bolsonarismo já perdeu e, não tendo força para livrar os golpistas da cadeia, recorre à truculência externa, juntando o fiasco daqui com o de lá.

Os fracassos das iniciativas punitivas na sede do império, tendem a bater com a mesma velocidade nas portas dos gabinetes das autoridades que emitiram as ordens, logo se ver-se-ão obrigados a entregarem os seus cargos. Ouviremos nos próximos dias e meses os sons das ordens emitidas: “O governo dos Estados Unidos da América, volta atrás”. De onde nos vem esta certeza? De dois movimentos em ascensão. O primeiro movimento, está no que se costuma chamar de “o resto do mundo”. As taxas de impostos elevadas além de irem contra todos os princípios neoliberais, atacam todos os países de uma só vez que, ao invés de se ajoelharem para pedir clemência, abandonam o barco da subserviência e buscam outras articulações. A continuar assim, logo, logo, veremos a noiva sozinha diante do bolo, todo esfarelado sem ânimo para contá-lo. Se todos os países estão fazendo os seus arranjos comerciais, certamente também negociarão com outras moedas e associarão os recursos em novos investimentos fora dos monopólios tradicionais. O segundo movimento, diz respeito à situação interna da economia e da população norte-americana; em um tempo em que a globalização, por meio da ideologia neoliberal estabeleceu que as fronteiras dos países devem ficar abertas, permitindo liberdade ao capital, fechar as portas, servirá para dificultar as exportações dos próprios produtos. 

Desse segundo motivo, desprender-se-ão os respingos do fiasco que contribuirá para o fortalecimento de pelo menos três reações: da economia, da política e das novas articulações internacionais. Do ponto de vista econômico, apenas um exemplo, os compradores de produtos externos, como é o caso da China que adquiria 52% da produção de soja dos produtores norte americanos, como também 15% da carne bovina e suína, com a inviabilidade dos impostos, buscará esses produtos em outras fronteiras agrícolas, dentre elas o Brasil e, as consequências já sabemos: mais devastação, mais concentração de terra e envenenamento ambiental.  No aspecto da política, o fiasco do Tio San de assumir-se como extrema direita, empurrará as forças políticas dos países para a posição de centro esquerda, dando um pouco mais de tempo às democracias representativas que não são as ideais, mas bem melhores do que os regimes totalitários puros. E, no aspecto das articulações internacionais, é provável que nesses longos quatro anos de bravatas asquerosas ainda por virem, os países de economias historicamente dependentes dos EUA, se soltarão e incorporarão tecnologias bélicas e industriais de outras matrizes.

Portanto, a reação positiva dos países diante das ameaças, ao invés de medo, transformou os rompantes indigestos do presidente Trump em desastrosos fiascos, dando a conhecer ao mundo que, um erro fatal de estratégia política nem sempre é perdoado pela história. É evidente que esse fracasso não é mérito de um só indivíduo. A decadência do capitalismo está atingindo por primeiro os países tradicionalmente dominantes, por isso as economias emergentes, por serem as mais leves e dinâmicas, se defendem com maior facilidade. Estamos claramente diante da expressão da lei da dialética conhecida como “negação da negação” que se manifesta pela concordância da ação e reação, ainda dentro da ordem dominante.

A nós não cabe adorar o medo. Mesmo com poucos avanços é preciso afirmar o desejo de liberdade. Trancar as portas dos retrocessos e assumir a defesa do direito às transformações sociais na linha socialista. Mas elas não virão de uma vez só, é preciso agarrar as cordas que se soltam e se arrastam atrás da locomotiva da história, como é o caso de não permitir a anistia aos golpistas; a defesa da soberania nacional e a luta pelas reformas estruturais. Quem nada faz, não faz nada. É preciso arriscar, investir e conclamar para que as desobediências parciais se convertam em insurreição total e não em um fiasco.

                                                                       Ademar Bogo



[1] NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2001, p. 50.

[2] FROMM, Érick. O medo à liberdade.14 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 216.