domingo, 17 de novembro de 2024

A REVOLUÇÃO LIBERAL

 

       

               Há diversas posições políticas em circulação; todas elas procuram dar conta da situação criada pela correlação de forças favoráveis à classe dominante no período pós-eleitoral. Teses como “massa de direita” ou “pobres de direita”, têm invadido os debates, quando, na verdade, são apenas expressões que revelam o imobilismo e misturam certos preconceitos com as incapacidades políticas de perceber os estrangulamentos que estão situados em causas um pouco mais profundas.

            Para início de conversa, voltemos um pouco o nosso olhar para o que defenderam Marx e Engels, em 1850, na mensagem à direção da Liga dos Comunistas: “Enquanto os pequeno-burgueses democratas querem concluir a revolução o mais rapidamente possível, depois de terem obtido, no máximo, os reclamos supramencionados, os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o poder do Estado, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só num país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado”.[1]

            Quando as críticas visualizam apenas o tempo presente, devido ao péssimo resultado da tática eleitoral, deixam elas de perceber que, o antes e o depois sempre são tempos imensamente maiores do assombro momentâneo. Por outro lado, para quem formou as suas concepções baseadas num suposto determinismo histórico, ao deparar-se com situações adversas, como as atuais, não vendo os resultados esperados, passa a culpar os deserdados por não acreditarem no paraíso. Na mensagem acima, defensora da continuidade da Revolução Liberal, até o ponto de inverter o comando do poder político e, as forças produtivas passarem ao controle dos trabalhadores, não há nenhuma previsão de tempo de conclusão, por isso, aquele processo, pode ter se convertido, nesse longo período, em permanente Revolução Liberal.

            Qual é a explicação que podemos dar para a situação política atual? A mais certa seria considerarmos que a Revolução Liberal à qual se referem Marx e Engels, em 1850, não foi ainda concluída totalmente, por dois motivos: o primeiro, diz respeito à existência da classe dominante, tendo, a seu favor, o avanço constante das forças produtivas, da ciência e da tecnologia e, se hoje consideramos existir o neoliberalismo, significa confirmar, ainda com maior vigor, a validade e a renovação daqueles princípios liberais. O segundo motivo decorre do primeiro, sendo que a Revolução Liberal se prolongou até os nossos dias, veio para muito mais além do que queriam os pequenos burgueses, pois, a dinâmica tecnológica recolocou as forças produtivas em outros patamares de exploração e, as relações de produção liberais influenciam também nas formas de pensar e de fazer política.

            O caminho aberto para o proletariado e para as massas populares, dentro dessa permanente Revolução Liberal, foi mudar periodicamente de táticas; grosso modo, configuradas como: a) Revoluções e insurreições proletárias e populares. As que foram vitoriosas implantaram o socialismo por algumas décadas, em alguns países; b) Estratégia das resistências armadas. Frente ao endurecimento dos regimes, diversas formas de organizações guerrilheiras e exércitos revolucionários, foram estruturadas, porém, dissociadas das insurreições, não lograram êxito e desapareceram; c) A busca da via pacífica eleitoral. Com o intuito de ir ganhando espaço dentro da permanente Revolução Liberal até chegar ao poder, a via institucional mostrou-se a mais adequada, principalmente nos últimos quarenta anos. Isso tudo mostra porque esse último fenômeno da decadência das forças de esquerda é mundial e não um simples erro de um ou outro partido. A aceleração da revolução tecnológica provocou esse fenômeno de esgotamento das tentativas de superação do capitalismo. Para continuar há que abrir uma nova forma de ofensiva.

            Se de algum modo os três períodos acima representam, mesmo parcialmente o que aconteceu, deveremos concordar que, desde 1848, as gerações se sucederam e enfrentaram sempre as mesmas forças comandadas pelo capital que soube conduzir a permanente Revolução Liberal. As vitórias que fizeram o poder passar para as mãos das forças socialistas, ocorreram parcialmente em tempos de crises extremadas, que chegaram a produzir as guerras mundiais. Fora disso, o capital, seja ele produtivo, financeiro ou especulativo, com suas leis tendenciais da: produção, exploração, acumulação, circulação, expansão e especulação, de maneira mais acelerada, ou um pouco mais lenta, seguiu, até os nossos dias, respondendo às necessidades de sua própria reprodução, dando-se o “luxo” de, em certas situações, fazer experimentos de extermínios populacionais, como foi, para citar alguns, o nazismo, o fascismo e, está sendo o sionismo. Isso não abala o domínio das forças produtivas decisivas, nem afeta mortalmente, apesar das crises, o processo de acumulação. Mesmo em decadência em alguns setores o capitalismo continua reafirmando-se e dando respostas aos problemas que ele mesmo cria.

            Se observarmos com maior atenção, veremos ainda que, embora as forças de dominação se embasem na economia, os inimigos simbólicos para as massas populares, sempre estiveram identificados com a política e encastelados na estrutura do Estado. Nesse sentido, se, em certos momentos, enormes esforços foram empenhados para defender-se das forças de repressão, em outros, mesmo a repressão estando presente, valeram mais as táticas reivindicatórias, no sentido de pressionar os capitalistas e os governantes, para, simplesmente garantir ordeiramente alguns direitos e não para tomar-lhes o poder.

            Nesse sentido, os partidos políticos de esquerda e as organizações populares e sindicais, aliadas desses partidos, nas últimas décadas, lutaram contra a classe dominante, até quando os governantes passaram a ser os próprios representantes dos trabalhadores. Logo, o comodismo universal que levou e impede a reação contra a Revolução Liberal, são, pelo menos três: a) a histórica educação moral cristã e constitucional, voltada para o respeito ao direito sagrado e intocável da propriedade privada; b) as lutas ordeiras, pacifistas, de caráter reivindicatório, desferidas contra o capital, sem a mínima intenção de tomá-lo e controlá-lo c) a visão do inimigo político, simbolizada pelos governantes ruins que poderiam ser substituídos por governantes bons, criando expectativas de que eles fariam tudo por nós e, a cada mandato renovariam os propósitos para todo o sempre.

            Esses três fatores sempre envolveram as massas pobres e fizeram-nas acompanhar os chamados, não por terem consciência, mas, por causa do abandono secular, projetado pelas elites brancas ou por necessidades materiais. Identificadas com a linguagem agressiva, vinda de líderes corajosos capazes de expressarem palavras que batiam contra a fome real, a falta de moradia, as péssimas condições de educação, os descalabros no atendimento à saúde, a carestia, a corrupção etc., lutaram bravamente sempre como forças aliadas. Ao assumirem os governos e ocuparem o lugar dos inimigos políticos, os representantes de esquerda passaram a falar palavras amenas e a dar supostas soluções insuficientes, como as que davam os seus antecessores de direita, contra os quais as massas protestavam. As mudanças de lugar das forças políticas, no posto governamental elevou a esquerda à condição de situação. Nesses processos liberais, compreendendo contra quem as massas direcionam os seus protestos, podemos concluir que, mesmo cooptadas, a tendência é elas serem de oposição e lutarem contra os políticos vistos como ruins, mansos e hipócritas.

Se quisermos debater como sair da defensiva para a ofensiva, precisamos entender que estamos vivendo, mesmo com diversas crises, um acelerado ascenso destrutivo da permanente Revolução Liberal capitalista, para enfrentá-la é preciso pensar a revolução dentro dessa revolução que, provavelmente dar-se-á com o retorno à estratégia das insurreições, enraizadas, mais proximamente, na desobediência civil. Para isso é preciso atacar as três domesticações: a) das ideias que impõe o comportamento moral de respeito à propriedade b) das reivindicações pacíficas invertendo-as para a apropriação do capital e dos meios de produção e, c) do ilusionismo político eleitoral, demonstrando que a democracia não pode ser representativa, mas participativa e distributiva da riqueza.

As massas não são de direita nem de esquerda, mas, mobilizadas, podem vir a ser contrarrevolucionárias ou revolucionárias. Tudo depende de quem estiver com elas.

                                                                        Ademar Bogo



[1] MARX/ENGELS. Mensagem do comitê central à Liga de Março de 1850. In. FERNANDES, Florestan (0rg) História. São Paulo: Ática, 1984, p. 224.

domingo, 3 de novembro de 2024

OS DOIS OLHOS DO LIBERALISMO

            Desde os jacobinos franceses do século XVIII, quando surgiram os conceitos, da esquerda não foi formulado para aceitar a governabilidade da direita, mas para se opor, contestar e radicalizar a revolução de 1789, com medidas impulsionadoras das reformas sociais; a abolição dos privilégios; a implementação do princípio da igualdade socioeconômica e a soberania popular. Isso e outras coisas mais, foram implementar entre maio de 1793 a julho de 1794, quando o “terror” marcou a História da Revolução Francesa. No entanto, a incapacidade de conduzir o processo para a democracia direta e as diversas indecisões no comando do governo, permitiu que todos os dirigentes fossem arrastados pelas ruas e decapitados na guilhotina em praça pública.

            Se a tradição modificou, em parte, o conteúdo, não transcendeu o significado original do conceito. Girondinos e Jacobinos, apesar de todas as divergências eram membros de um único Clube, formado para defender a revolução e o liberalismo capitalista. Portanto, a mesma cabeça apenas com os olhos estrábicos, um voltado para a esquerda e o outro para a direita. De lá para cá, houve épocas que aquela denominação erroneamente foi associada às práticas revolucionárias, socialistas e comunistas, quando, na verdade, esquerda queria dizer apenas, oposição, discordância de rumo dos anseios liberais, o que veio a se confirmar mais adiante.

Se no século XX nunca a humanidade avançou tanto na realização das revoluções anticapitalistas, no século XXI, regrediu tanto ao ponto de, sob o manto do neoliberalismo, ao invés de inovar e colocar as tarefas possíveis de serem implementadas a favor das rupturas, reduziu os anseios até chegar aos governos e governar “para todos”. Renegando as características revolucionárias e a própria linguagem, em nome da democracia passaram a defender o estado democrático de direito, legitimador da sociedade desigual.

            Já no início do século XXI, de um momento para outro, surgiu um segundo olhar, quando reergueu-se a mesma e velha cabeça liberal, com o olho esquerdo virado para o centro e o outro para a direita, ambos interessados a comandar o mesmo sistema, no interior da mesma ordem e do mesmo Estado. A explicação dialética para esse movimento dos contrários, instalados no mesmo crânio, com as mesmas ideias liberais, representando, pela democracia representativa todas as forças reunidas nos repetidos e respeitosos processos eleitorais. No entanto, enquanto o olho à direita veio evoluindo, ano após ano, para mais, chegou ao ponto máximo do giro de 180 graus em que se encontra a extrema-direita; do mesmo modo ocorreu com as forças contrárias, ao invés de deslocar o olhar para o lado esquerdo, dirigiu-se do centro para a direita e foi ficando menos e cada vez menos esquerda, ao ponto de desaparecer. O que restou foi um só corpo, com uma cabeça liberal e, os dois olhos obliquamente voltados para a mesma direção.

Esse olhar torto das forças de esquerda, perdeu gradualmente o contato com as cores proletárias. O vermelho da consciência partidária, passou a se acostumar com a companhia de matizes multicores, representantes do asco ideológico do passado. As ofensivas populares foram empurradas para a defensiva, levando à comprovação de que, quando radicalidade e a agressividade saem da política, começa-se, respeitosamente, a tratar a ordem constitucional e os inimigos dentro dela, com cortesia administrativa.

            O abandono das causas mobilizadoras em troca de espaço institucional, criou a governabilidade assistencialista, permissiva e respeitosa aos limites impostos pela ordem. Para quem antes brigava pela elevação do orçamento da saúde e da educação, agora, no governo, obriga-se, comportadamente, a formular arcabouços e respeitar o teto de gastos para, como os velhos jacobinos, evitar agredir os princípios liberais da acumulação do capital.

            Sem paixões vingativas, é importante considerar que a causa dos problemas da subordinação à instrumentalização institucional, não está apenas no governo prostrado diante dos preceitos liberais, nem nas circunstâncias que o obrigaram a aliar-se com certas forças pútridas, mas no partido político e nos movimentos, sindical e popular que entraram junto na governabilidade, deixando de lado as tarefas ofensivas contra o capital e o Estado capitalista. Foi com essas forças em luta que, em 2002, dezessete anos depois do fim da ditadura militar, derrotamos as forças de direita no governo. Por que então as coisas estão virando no seu contrário? Pelo simples fato de que, quem tinha não tem mais as massas mobilizadas.

            Se as bandeiras históricas de luta foram subsumidas pelas vitórias eleitorais e as tornaram irrealizáveis, substituí-las agora por demandas catastróficas como é o caso do aquecimento global e, empenhar todos os esforços no plantio de árvores ou oferecer alimentos orgânicos, fora da luta de classes, representará, colocar-se ainda mais na defensiva. Foi o negacionismo de esquerda de abandonar as referências estratégicas, como o socialismo, a insurreição popular e a revolução que permitiu espaço para a demonização do comunismo e a prostração diante das ofensivas da extrema-direita.

As massas não migraram para o outro lado, continuam com os mesmos anseios e desejos de justiça, combate ao imobilismo e a formalismo da política. Não será o medo das tragédias climáticas que despertará a indignação, mas a coragem de liderar a desobediência civil contra aquilo que acontece nas proximidades dos trajetos cotidianos, onde os olhares alcançam. A consciência política somente se forma na medida que a organização partidária serve para provocar conflitos. Partidos legalistas, defensores da ordem, enforcam-se com a própria linha conciliatória.

A carência da organização política que tenha como estratégia o socialismo é o grande dilema para recriar as lutas de massa. Na medida que a finalidade estiver estabelecida, será possível avaliar a importância de cada tática, desse modo, a governabilidade, no capitalismo, pode ser uma possibilidade temporária de ascensão das forças, mas nunca o recurso definitivo.  Recorrer às forças de direita, como estão fazendo, para enfrentar a extrema-direita é tão perigoso quanto apagar fogo com gasolina. Trabalhar para encontrar um óculos retificador do estrabismo do liberalismo, foi o maior engano que as forças de esquerda puderam cometer.

Os dois olhos do liberalismo devem ser cegados pela força das lutas revolucionárias. Quando isto ocorrer, teremos um só olhar, aquele que nunca perde de vista o horizonte socialista.

                                                          

                                                                                   Ademar Bogo