domingo, 23 de abril de 2023

CONFORMISMO ASSOMBROSO

                                                               

            O filósofo Walter Benjamin, expôs em seu texto “Sobre o conceito de História” (2008) que o materialismo histórico tem como dever, fixar uma imagem do passado e mostrá-la no momento de perigo, ao sujeito atual, isto para que ele veja o que ameaça, tanto a existência da tradição como aqueles que a recebem. Esse perigo pode ser o de entregar-se às classes dominantes e continuar sendo instrumento de uso delas. Então diz textualmente: “Em cada época, é preciso arrancar a tradição do conformismo que quer apoderar-se dela”.

            Muito teríamos de pensar sobre as tradições, principalmente nessas expressas pelas concepções de mundo, como o cristianismo que, ao passar os primeiros trezentos anos de existência foi cruelmente perseguido pelos imperadores romanos, vindo a ser reconhecido apenas com o Edito de Milão, no ano de 313. No entanto, o terror romano ao ser diluído como imagem histórica, permitiu que a própria Igreja instalasse, no ano de 1233, por ordem do Papa Gregório IX, o “Tribunal da Santa Inquisição”, substituindo a jaula dos leões, pelas fogueiras acesas pelos delegados governamentais. Até o momento nada de tão horripilante veio a se propor como repetição, mas é bom ficarmos atentos e, sempre nos momentos de “perigos políticos” observarmos como se movem os agentes das religiões.

            Por outro lado, a concepção de mundo liberal, formulada pelos filósofos da modernidade, dando à nascente burguesia mercantil e industrial, os fundamentos para escaparem das limitações impostas pelo poder feudal. As respostas dadas por eles para chegarem a estabelecer a unidade política e atrair a maioria das forças sociais, em torno do tripé: “liberdade, igualdade e fraternidade”, foram com a violência revolucionária e a criação de instrumentos de poder coercitivo, para anular qualquer iniciativa de reversão da ordem que eles oficializaram. Porém, eles sempre estiveram em alerta, pois sabem o que é ficar sem um poder de defesa e ter uma guilhotina armada em cada praça, para onde os populares podem levar os escolhidos e decapitá-los como foi feito na França a partir de 1792.

            Do ponto de vista da concepção de mundo do materialismo histórico, cabe à classe trabalhadora organizada, apresentar as imagens do passado, como as rebeliões sufocadas dos escravos na antiguidade, sanguinária repressão efetuada pela burguesia contra a Comuna de Paris em 1871, e tantos outros atos semelhantes. No Brasil, se tomarmos somente a tradição republicana, iremos encontrar as crueldades jurídicas e políticas, contra o povoado de Canudos destruído e a maioria da população morta pelas forças militares do Estado brasileiro. O mesmo ocorreu com o Contestado em Santa Catarina; mais adiante, a perseguição aos revolucionários da “Intentona Comunista” de 1935 e, os mesmos lados enfrentando-se no pós-golpe de Estado de 1964, quando vários grupos rebeldes foram dizimados. E sem passar a memória por todos os fatos, chegamos ao período de 2019-2022, quando a nova corrida do ouro na Amazônia, levou ao sufocamento e extermínio das comunidades indígenas e, com objetivo semelhante, procedeu-se, em nome da comprovação da hipótese da “Imunidade de rebanho”, com ordem do poder executivo, de não importar vacinas, quase um milhão de pessoas, em menos de dois anos perderam a vida.

            Por outro lado, temos um pensamento expresso por Kar Marx e Friedrich Engels, no livro “A ideologia alemã” (2009), que nos alerta para os perigos do esquecimento da tradição de não percebermos que: “...a existência de ideias revolucionárias numa determinada época pressupõe desde já a existência de uma classe revolucionária...”.

            Nessa última visão, devemos nos dar conta do perigo iminente da tradição nos vir a surpreender, talvez não pela crueldade, mas pela ingenuidade. Nesse aspecto não podemos ampliar muito, mas a discussão deveria voltar-se para o paradoxo: governabilidade e organização de classe. Já vimos que pelo processo eleitoral, tendo em vista inserir as forças politicas e sociais no comando do Estado, não surgem nem são formuladas “ideias revolucionárias” e, provavelmente porque, olhando para o pensamento acima, já não há classe revolucionária e, neste sentido, a primeira alternativa ilude e anula a possibilidade da segunda iniciativa.

            Se não podemos falar de tradição longínqua, podemos falar desse século que já teve, a ascensão dos trabalhadores ao governo, um golpe de Estado, a reedição do neonazismo abrasileirado e o retorno das mesmas forças impedidas com os mesmos aliados ao governo. E no momento que todos observam as pesquisas para saberem se o jeito de governar está correto, e como se a imagem do passado fosse a mesma da “ordem e do progresso”, os perigos ficam encobertos pelas expectativas sem um fiapo de ideias revolucionárias, porque não há classe revolucionária organizada. Mas por que não há, se temos homens e mulheres carregados com mesmos e com outros problemas que ameaçaram as gerações do passado?  

            O conformismo apoderou-se também desta época. Enquanto o agronegócio e a grande mídia esperam que Lula ordene que o MST pare com as ocupações; o MST espera que o governo negocie e libere créditos; os banqueiros olham para o Banco Central e exigem juros altos; o capital especulativo impõe o superavit primário e o respeito ao teto de gastos; os pobres e famintos aguardam as bolsas e a oposição nazista espera o desgaste da autoridade governamental para desfechar um novo golpe ou voltar com as mesmas vestimentas e pijamas manchados nas próximas eleições.

            O dilema político de deixar-se ou não usar pela classe dominante, nessa viagem com paradas previstas a cada quatro anos, parece ter tomado conta desta época. O esquecimento e o conformismo impedem as ideias de preverem os perigos futuros. Eles já se mostram no brilho dos dentes dos cães raivosos, embarcados no último vagão e nos acenos da ex-primeira-dama correndo para livrar-se do enquadramento no roubo das joias da coroa.

            Ignorar passivamente os perigos vai contra a tradição revolucionária. É preciso sacudir as ideias para que elas acordem as consciências adormecidas, mas para isto é preciso colocar as soluções diante de cada problema e avaliar como devem ser superados. As relações divergentes entre exploradores e explorados, dominadores e dominados, já estiveram presentes em todas as épocas, não sejamos conformistas, os mesmos perigos que rondaram as gerações passadas, ansiosas por mudanças estruturais, permanecem ativos e prontos para nos golpearem. Precisamos que, o movimento e as ideias revolucionárias voltem a ser maiores que os perigos que ameaçam a humanidade.

                                                                                               Ademar Bogo

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