domingo, 20 de fevereiro de 2022

O TESTAMENTO EXTRAVIADO

    Hannah Arendt, filósofa alemã, perseguida pelo nazismo na década de 1940, do século passado, em seu livro “Entre o passado e o futuro”, nos remete a pensarmos, de fato, se temos consciência do presente.

            A princípio o testamento pertence à tradição da civilização. Deixar para as gerações futuras tudo documentado é um anseio gerações mais velhas. Mas há tesouros que se perdem justamente por não serem identificados, ou mesmo porque, não possuem nome ou identificação mais precisa.

            Vivemos um tempo em que a penumbra histórica instalada no ambiente da política impede de enxergarmos nitidamente, as letras para lermos o que nos foi deixado escrito, de bom e de ruim, no testamento do passado, seja. Somos conhecedores das rupturas ocorridas entre as forças partidárias neste século. Desde 2004, setores descontentes buscavam outro caminho para chegarem ao futuro, sem considerar, na sua profundidade, o testamento do passado.

            No ano de 2013 foi a vez das forças descontentes, da classe média, aliadas e manipuladas, expressarem, de algum modo, o mesmo descontentamento das forças de esquerda anteriormente rebeladas contra o governo. No entanto, essas mobilizações não tinham e nem recorreram a nenhum testamento, a não ser que se considere as orientações imperialistas o texto base. Mas, também não queriam um futuro tão avesso ao presente; algumas melhorias e a expulsão das forças incômodas do governo.

            O resto da História já conhecemos. Com as forças de esquerda e de centro dispersas, os percalços, sobressaltos, riscos e manobras, fizeram com que chegássemos a este momento para que as forças novamente se movam para adequarem os desajustes do presente, ao normal satisfatório. Poderíamos ver estranheza o retorno à “emergência subjetiva” como diria o filósofo e psicanalista Jaques Lacan, na qual o sujeito procura o seu “outro”, neste caso, o outro contestado e abandonado no passado.

            A volta de todos os pássaros para a mesma árvore que sustentava os ninhos é de fato uma emergência. Há um animal que ameaça devorar a todos. É preciso detê-lo. No entanto, este presente tumultuado não permite que se volte mais anteriormente ao processo recente, resgate-se o testamento extraviado, que fora deixado pelos clássicos do marxismo para, com isso prepararmos o caminho do futuro.

            É evidente que a “emergência subjetiva” generalizou-se para os diversos setores que, tomados pela angústia andam atormentados em busca de alguma estabilidade. Talvez, escapem apenas desse movimento de ajuntamento sem testamento, o capital especulativo, o banditismo político, as forças armadas, setores da mídia e parcelas das seitas pentecostais.

            De qualquer forma, a emergência exige o ajuntamento e, cada força o faz por interesse delimitado. De certo não é vergonhoso voltar ao ponto onde ocorreu o rompimento entre as forças no início do século para contribuir para que o mal maior seja recuado; mas, não custa refletir sobre duas perguntas: a primeira diz respeito, o por que, os que romperam, por terem repetido os mesmos gestos, voltam, praticamente com as mãos vazias? E, a segunda, qual é o testamento a ser seguido, aquele formulado pelo materialismo histórico, ou este institucionalizado no período de 2003 a 2010?

            Aparentemente todas as forças que se movem, atualmente, para o centro, desdenham da crítica ao capitalismo e ao Estado capitalista e, centram a contestação contra o governo maluco instalado pela manipulação constante das forças do capital. Mas é importante que pensemos no depois. Se as forças que em 2016 arquitetaram o golpe por julgarem o governo incapaz, agora assumem a representação de vice na chapa comandada pela mesma força outrora derrubada, é de se perguntar até onde ficarão a favor e a favor de que?

            Por fim, há um testamento extraviado nas margens da História e, nele estão os nomes das coisas e as indicações das medidas a serem tomadas, com o devido crivo das gerações atuais. Certamente, muitos dirão que “agora não é hora de pensar nisso”, mas quando foi? Olhando para trás, vemos alguns fragmentos do velho testamento caídos no chão da História na década de 1960.

            Entre o passado e o futuro há o presente. Ignorar o passado e viver só das necessidades do presente, incerto será o futuro.

                                                                       Ademar Bogo

Nenhum comentário:

Postar um comentário