domingo, 12 de setembro de 2021

DESCONFIAR E REAGIR

              Desde o surgimento do Direito Positivo temos a inversão da supremacia da lei sobre o poder do soberano. Dizer que “ninguém está acima da lei”, tornou-se uma demonstração concreta de rebaixamento dos anseios autoritários. No entanto, como bem descreveu Arthur Schopenhauer, em seu livro, “O mundo como vontade e representação” (1819), a legislação positiva é a doutrina moral do direito aplicada ao inverso, isto porque, em cada lugar o seu alcance baseia-se nas relações e circunstâncias especiais estabelecidas.

            Há algum tempo estamos ouvindo nas “pregações políticas” de orientação ideológica integralista, o verberado “Deus acima de tudo”. Invocar Deus em meio ao caos de um desgoverno poderia representar que a Fé dos cristãos está sendo ameaçada, certamente porque os crentes estariam voltando as suas atenções ao “bezerro de ouro”. No entanto, o significado real dado a essa expressão, é que Deus está acima da lei e quem estiver com ele eleva-se acima dos poderes da República.  

            Na última semana penetrou pelos olhares mais atentos uma mensagem com o título de “Declaração à nação” e, para muitos passou como um pedido de desculpas do ainda não apenado presidente, pelos arroubos proferidos às vésperas do dia 7 de setembro, levando, pelo resultado benéfico, ao aprofundamento das frustrações dos esperançosos neointegralistas, pois o golpe de Estado para arrasar as instituições não veio e, tornou-se um espirro contra um único ministro do Supremo Tribunal Federal.

            Não há necessidade de longas explicações para as desnecessárias escaramuças descabeçadas, afirmadoras da negação das condições imediatas para oficializar qualquer tipo de golpe, porque, também não há nenhum movimento contrário que possa ameaçar o funcionamento da ordem. É evidente que falta mesmo é trabalho e competência para resolver os problemas cruciais do país, tão conhecidos e denunciados pelas manifestações verdadeiramente populares, situados na área da saúde, da educação, da assistência social, do emprego, preço dos combustíveis, controle da inflação etc., coisa que qualquer governante capitalista estaria empenhado em resolver. No entanto, vimos que os adeptos do caos parecem viver em outro planeta e se movem por duas reinvindicações apenas: fechamento das instituições e o voto impresso.

            Soou como “um tiro pela culatra” a tal “Declaração à nação”. E foi. Trouxe um grande prejuízo para os adeptos do “Deus acima de tudo”. E, como um terremoto frustrado, só balançou a placa tectônica do “banditismo político”, que buscou rapidamente com o auxilio de setores das elites conservadoras, de natureza também golpista, mas desconfiadas com as consequências do prolongamento dos tremores, interferiu para ganhar tempo. Do lado das forças de esquerda, tudo continua como estava, nenhum grão de terra desmoronou.   

            “Tudo bem”, dizem os conformados e ansiosos de que chegue logo 2022, para, com as próximas eleições presidenciais acabar com a farsa e os assanhamentos do representante do partido militar e das milícias, navegantes sobre águas verde e amarelas, com odor putrefato de tanta sujeira composta de propinas, corrupções, ódio, crimes e lodo.

            Mas não são somente esses os sinais, como diria Tirésias, o vidente grego declarando a Édipo sobre a condição para debelar a peste entranhada no reino de Tebas. Havia um assassino a ser descoberto e julgado. As frases de acanhamento na “Declaração à nação” nada dizem das intenções obscuras do pestilento presidente, escondedor de crimes. Por isso, o que deve ser discutido, não é o texto, mas as três palavras finais, aparentemente soltas, fora da elaboração, grafadas com letras maiúsculas e portadoras de uma mensagem própria. Quais são as palavras? “DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA”.

            Antes de tudo, essas palavras não são propriamente do emissor, refletem a tradição “integralista”, um movimento surgido na França no final do século dezenove, para combater o modernismo, por meio da aliança dos propósitos religiosos com os princípios liberais. No Brasil, esse movimento, devido à crise de modelo econômico de 1929, surgiu logo em seguida, buscando reunir, na mesma concepção, as forças antidemocráticas, defensoras de valores conservadores, autoritários e de tendência monárquica. Esta última ainda não foi defendida abertamente na atualidade, como a forma de governo, mas é desejada. Podemos vê-la incluída como terceira reinvindicação, posta pelas posições truculentas do fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, dando ao presidente o status de monarca.

            Há sem dúvida nenhuma um movimento em direção a anulação da política, o cancelamento dos partidos, das eleições e de outras formas de participação, sustentado pela junção dos princípios morais, militares e tradicionais. Ou seja, na medida em que apresentam “Deus” como a figura principal, pensam atrair as forças religiosas, agora não mais representadas pela Igreja católica, como foi no passado, mas nas seitas neo-pentecostais insufladas pelo imperialismo norte americano. Com o referencial da “pátria”, dirigem as atenções às forças militares, policiais e paramilitares e, pelo saudosismo “familiar”, atraem os conservadores para juntos edificarem a nova ordem autocrática.  

            Do ponto de vista estratégico, o texto da “Declaração à nação”, em nada mudou. O suposto recuo fez-se necessário porque, apesar de tudo, o momento histórico ainda não legitimou a linha proposta e, certas expressões foram precipitadas, por isso iriam refluir sobre “a família imperial”, ocasionando a prisão de alguns de seus membros e de outros adeptos. Um acordo para baixar as armas, foi oportuno, mas os anseios integralistas permanecem intactos.

            De outro lado, é importante iniciar um debate para combater a ingenuidade em nossas fileiras, de que basta ganhar as próximas eleições presidências e tudo será reencaminhado para o sucesso do crescimento econômico, da geração de emprego, do respeito à democracia etc. Esse raciocínio dando como certo, não é de tudo ruim, mas como já disseram outros autores, haverá eleições? Disputaremos e ganharemos o pleito? Seremos empossados? E, governaremos com a mesma tolerância dada ao príncipe das “motociatas” exibicionistas? 

            Acima de tudo, é importante compreender que o capitalismo decadente geme como um animal ferido e se debate por todos os lados; por isso, lhe interessa mais uma ordem instável do que a sonhada estabilidade que os capitalistas da produção, a classe média e o proletariado conservador adoram.

            O debate deve ir de encontro aos desafios essenciais fazendo ver que precisamos pensar e agir; em primeiro lugar, como propôs Maquiavel, e combater “deus” separando a religião da política, dando a cada esfera o seu lugar. Em segundo lugar, como fizeram Karl Marx e Friedrich Engels, ao denunciarem que, “o proletariado não tem pátria” e “os laços familiares das famílias operárias são desfeitos e seus filhos, reduzidos a simples objeto de comércio, a simples instrumentos de trabalho”.

            É preciso desconfiar e reagir como quem está perdendo a liberdade, para que não sejamos pegos de surpresa e sem energias, pelas sombras do cair da tarde.

                                                                                              

                                                                                                                Ademar Bogo

                                               

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