Os assuntos chatos são como dores
reumáticas, quanto mais o sujeito se move, mais incômodos aparecem. Pior ainda
fica, quando as consequências se estendem para amplas coletividades. Platão em
seu tempo já havia se dado conta que há dois tipos de humores: o bom e o ruim;
com isso os indivíduos são diferenciados. entre: gradáveis e desagradáveis; uns
riem da mesma situação que leva muitos outros ao desespero.
Willian Shakespeare, ao escrever “O
mercador de Veneza”, destacou curiosamente a momentaneidade do surgimento de
figuras estranhas. “Pelo deus Jano de
dupla face, a natureza, agora, confecciona uns sujeitos bem curiosos: uns, de
olhos apertados, riem como papagaio trepados numa gaita de foles; outros andam
com tal cara de vinagre, que nunca os dentes mostram à guisa de sorriso, muito
embora Nestor jurasse que a pilhéria é boa”.[1]
A referência feita a Jano, o deus
romano, responsável pelas transições, principalmente às que se referiam ao tempo
do passado para o presente, como dezembro e janeiro, daí vem o seu nome e suas características,
por ter duas faces: uma voltada para trás e a outra para frente. Desperta o
interesse em ler a peça ou assistir o filme, para ver um mercador riquíssimo
pedindo dinheiro emprestado para ajudar um amigo. Os resultados são perversos,
pois as expressões de discriminação racial, violência, ódio, preconceitos, misturados
com manifestações de amor, justiça e diversão, constroem as modulagens faciais,
não mais de deus, mas dos seres humanos.
Em nosso tempo, Jano resolveu fazer
uma faxina no paraíso localizado na sede do império norte-americano. Para isso
confeccionou governantes que, já não riem tanto com as desgraças alheias, senão
que, com suas caras de “vinagre” azedas, sequer mostram os dentes, mesmo quando
fazem chacota do destino alheio.
A faxina humana começou por jogar
fora pela deportação dos imigrantes transformados antes em prisioneiros; na
visão das criaturas de Jano, o “lixo humano descartável” precisou ser retirado
com violência. Ao mesmo tempo uma profunda faxina ainda em curso, pretendendo
varrer embaixo dos móveis e tapetes, o que está sendo considerado como excesso
de pessoas locadas em cada repartição do serviço público. No entanto, as vassouradas
mais fortes buscam atingir o espaço do mercado, que, embora cheio de luzes, não
consegue eliminar as sombras e as ameaças de criar uma crise de produção e
consumo no interior do paraíso.
Observando friamente, ninguém pode
questionar a soberania de um país e, muito menos do paraíso. Acontece que neste
caso Jano exagerou nas medidas e, ao invés de investir na confecção da face
sorridente, colocou toda as suas habilidades para formar a face azeda de
vinagre que passou a ameaçar o mundo.
Inicialmente a faxina do paraíso está
criando apreensão no mundo, pois não se trata de um mero “tarifaço” pessoal da
figura de cara azeda; é uma imposição afrontosa coletiva de classe, ao modelo
econômico do neoliberalismo, liderado pelos Estados Unidos da América desde a
década de 1970 que, como toda criatura perversa um dia se volta contra o
criador. Por isso Jano, nesse momento, ao invés de investir na face que olha
para frente, obrigou-se a empenhar todos os seus esforços na face virada para
trás, para forçar a transição em situação de crise virando as costas para todos
os países do mundo.
O tarifaço é a tentativa de criar um
novo modelo, denominado de Neomercantilismo, sem, contudo, aniquilar o neoliberalismo,
pois, será sustentado, principalmente pela Europa e pelos países emergentes que
compõem o Brics (Brasil, Rússia, India, China e África do Sul, e outros). Esse
modelo arcaico, pretende compensar todas as perdas do déficit comercial por
meio da elevação das tarifas, como sendo uma punição a quem produz mais com
custos e preços menores, daqueles praticados na sede do império da
globalização. A perda concorrencial é evidente e, agora, Jano de cara feia,
quer usar a força.
Há poucos dias a Opera Mundi, ao
acompanhar a Conferência sobre “Dilemas da Humanidade” realizada em São Paulo,
divulgou o dado assustador que, nas últimas duas décadas, as dividas externas
dos países em desenvolvimento, quadruplicou e atingiu em 2023, a cifra de 11,4
trilhões de dólares; segundo essa fonte, representa 99% das receitas de
exportação desses países devedores. “Isso significa que cada dólar ganho com a
exportação de bens e serviços é um dólar devido a um banco ou detentor de
títulos estrangeiro”.[2]
Observando friamente, se todo resultado
do comercio exterior dos países em desenvolvimento se destina a pagar
dividendos da dívida externa, aos credores dos países capitalistas
desenvolvidos, dentre eles os Estados
Unidos da América, o “tarifaço”, é uma medida que pretende, além de explorar
ainda mais os pobres, fazê-los arcar com o déficit nas finanças dos países
ricos e duplicar os ganhos dos credores. Para além disso, elevar os gastos dos
países devedores com o pagamento das dívidas externas, a medida visa
enfraquecer as instituições controladoras das relações comerciais mundiais,
como a OMC e obrigar os produtores, no interior dos Estado Unidos, a produzirem
e abastecerem o mercado local.
Ocorre que, essas tentativas não
dependem da simples vontade humana. Temos um exemplo brasileiro de um
presidente eleito em 1989 que declarou serem os carros nacionais, verdadeiras “carroças”
e, para controlar a inflação, confiscou cerca de 30% do PIB aplicado na
Caderneta de Poupança. Dois anos depois de eleito, perdeu cargo por meio do impeachment.
O fenômeno tende a se repetir com a política nos Estados Unidos. As reações
populares demonstram que a faxina no interior do paraíso está incomodando os habitantes
do reino.
Mas é cedo ainda para delinearmos as
consequências dessa desaforada criação de Jano que, pode estar carrancudo com a
face que olha para trás, mas sorridente com a outra que olha para frente. Se os
países mais afetados responderem com as mesmas medidas e reformularem a
engenharia política, o império norte-americano poderá entrar em recessão e
ficar totalmente isolado. Evidentemente, sobrará a alternativa da guerra mundial.
Nesse caso, os países unidos poderão derrotá-lo definitivamente. Logo, as futuras
gerações poderão recontar a história da destruição do paraíso a qual começou
com uma desesperada faxina.
Para as forças revolucionária, não
basta olhar e torcer, pois, não se trata de um jogo entre os nossos inimigos. É
preciso preparar-nos para entrarmos em campo, não para defender o mercado, mas,
para aproveitarmos os conflitos entre eles e impulsionarmos a nossa própria
transição.
Ademar
Bogo
[1]SHAKESPEARE.
W. O mercador de
Veneza. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000094.pdf
[2] PRASHAD, Vijay. É possível sair de
um mundo com 11,4 trilhões de dólares em dividas? https://operamundi.uol.com.br/opiniao/e-possivel-sair-de-um-mundo-com-114-trilhoes-de-dolares-em-dividas/#:~:text=Nas%20%C3%BAltimas%20duas%20d%C3%A9cadas%2C%20a,exporta%C3%A7%C3%A3o%20dos%20pa%C3%ADses%20em%20desenvolvimento.
Acesso em 06/04/2025.
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