domingo, 6 de abril de 2025

O PERIGO DA FAXINA NO PARAÍSO


            Os assuntos chatos são como dores reumáticas, quanto mais o sujeito se move, mais incômodos aparecem. Pior ainda fica, quando as consequências se estendem para amplas coletividades. Platão em seu tempo já havia se dado conta que há dois tipos de humores: o bom e o ruim; com isso os indivíduos são diferenciados. entre: gradáveis e desagradáveis; uns riem da mesma situação que leva muitos outros ao desespero.

            Willian Shakespeare, ao escrever “O mercador de Veneza”, destacou curiosamente a momentaneidade do surgimento de figuras estranhas.  “Pelo deus Jano de dupla face, a natureza, agora, confecciona uns sujeitos bem curiosos: uns, de olhos apertados, riem como papagaio trepados numa gaita de foles; outros andam com tal cara de vinagre, que nunca os dentes mostram à guisa de sorriso, muito embora Nestor jurasse que a pilhéria é boa”.[1]

            A referência feita a Jano, o deus romano, responsável pelas transições, principalmente às que se referiam ao tempo do passado para o presente, como dezembro e janeiro, daí vem o seu nome e suas características, por ter duas faces: uma voltada para trás e a outra para frente. Desperta o interesse em ler a peça ou assistir o filme, para ver um mercador riquíssimo pedindo dinheiro emprestado para ajudar um amigo. Os resultados são perversos, pois as expressões de discriminação racial, violência, ódio, preconceitos, misturados com manifestações de amor, justiça e diversão, constroem as modulagens faciais, não mais de deus, mas dos seres humanos.

            Em nosso tempo, Jano resolveu fazer uma faxina no paraíso localizado na sede do império norte-americano. Para isso confeccionou governantes que, já não riem tanto com as desgraças alheias, senão que, com suas caras de “vinagre” azedas, sequer mostram os dentes, mesmo quando fazem chacota do destino alheio.

            A faxina humana começou por jogar fora pela deportação dos imigrantes transformados antes em prisioneiros; na visão das criaturas de Jano, o “lixo humano descartável” precisou ser retirado com violência. Ao mesmo tempo uma profunda faxina ainda em curso, pretendendo varrer embaixo dos móveis e tapetes, o que está sendo considerado como excesso de pessoas locadas em cada repartição do serviço público. No entanto, as vassouradas mais fortes buscam atingir o espaço do mercado, que, embora cheio de luzes, não consegue eliminar as sombras e as ameaças de criar uma crise de produção e consumo no interior do paraíso.

            Observando friamente, ninguém pode questionar a soberania de um país e, muito menos do paraíso. Acontece que neste caso Jano exagerou nas medidas e, ao invés de investir na confecção da face sorridente, colocou toda as suas habilidades para formar a face azeda de vinagre que passou a ameaçar o mundo.

            Inicialmente a faxina do paraíso está criando apreensão no mundo, pois não se trata de um mero “tarifaço” pessoal da figura de cara azeda; é uma imposição afrontosa coletiva de classe, ao modelo econômico do neoliberalismo, liderado pelos Estados Unidos da América desde a década de 1970 que, como toda criatura perversa um dia se volta contra o criador. Por isso Jano, nesse momento, ao invés de investir na face que olha para frente, obrigou-se a empenhar todos os seus esforços na face virada para trás, para forçar a transição em situação de crise virando as costas para todos os países do mundo.

            O tarifaço é a tentativa de criar um novo modelo, denominado de Neomercantilismo, sem, contudo, aniquilar o neoliberalismo, pois, será sustentado, principalmente pela Europa e pelos países emergentes que compõem o Brics (Brasil, Rússia, India, China e África do Sul, e outros). Esse modelo arcaico, pretende compensar todas as perdas do déficit comercial por meio da elevação das tarifas, como sendo uma punição a quem produz mais com custos e preços menores, daqueles praticados na sede do império da globalização. A perda concorrencial é evidente e, agora, Jano de cara feia, quer usar a força.

            Há poucos dias a Opera Mundi, ao acompanhar a Conferência sobre “Dilemas da Humanidade” realizada em São Paulo, divulgou o dado assustador que, nas últimas duas décadas, as dividas externas dos países em desenvolvimento, quadruplicou e atingiu em 2023, a cifra de 11,4 trilhões de dólares; segundo essa fonte, representa 99% das receitas de exportação desses países devedores. “Isso significa que cada dólar ganho com a exportação de bens e serviços é um dólar devido a um banco ou detentor de títulos estrangeiro”.[2]    

            Observando friamente, se todo resultado do comercio exterior dos países em desenvolvimento se destina a pagar dividendos da dívida externa, aos credores dos países capitalistas desenvolvidos, dentre eles os  Estados Unidos da América, o “tarifaço”, é uma medida que pretende, além de explorar ainda mais os pobres, fazê-los arcar com o déficit nas finanças dos países ricos e duplicar os ganhos dos credores. Para além disso, elevar os gastos dos países devedores com o pagamento das dívidas externas, a medida visa enfraquecer as instituições controladoras das relações comerciais mundiais, como a OMC e obrigar os produtores, no interior dos Estado Unidos, a produzirem e abastecerem o mercado local.

            Ocorre que, essas tentativas não dependem da simples vontade humana. Temos um exemplo brasileiro de um presidente eleito em 1989 que declarou serem os carros nacionais, verdadeiras “carroças” e, para controlar a inflação, confiscou cerca de 30% do PIB aplicado na Caderneta de Poupança. Dois anos depois de eleito, perdeu cargo por meio do impeachment. O fenômeno tende a se repetir com a política nos Estados Unidos. As reações populares demonstram que a faxina no interior do paraíso está incomodando os habitantes do reino.

            Mas é cedo ainda para delinearmos as consequências dessa desaforada criação de Jano que, pode estar carrancudo com a face que olha para trás, mas sorridente com a outra que olha para frente. Se os países mais afetados responderem com as mesmas medidas e reformularem a engenharia política, o império norte-americano poderá entrar em recessão e ficar totalmente isolado. Evidentemente, sobrará a alternativa da guerra mundial. Nesse caso, os países unidos poderão derrotá-lo definitivamente. Logo, as futuras gerações poderão recontar a história da destruição do paraíso a qual começou com uma desesperada faxina.

            Para as forças revolucionária, não basta olhar e torcer, pois, não se trata de um jogo entre os nossos inimigos. É preciso preparar-nos para entrarmos em campo, não para defender o mercado, mas, para aproveitarmos os conflitos entre eles e impulsionarmos a nossa própria transição.    

                                                           Ademar Bogo



[1]SHAKESPEARE. W. O mercador de Veneza.  http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000094.pdf

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