domingo, 20 de abril de 2025

A POLÍTICA DA CARA FEIA

 

Desde o surgimento da política na antiguidade dá-se a ela a responsabilidade da organização harmônica das relações entre indivíduos e governantes e de competição entre Estados e Estados. Por sua vez, a política não anda com as próprias pernas, ela precisa das matérias econômicas e comerciais para se locomover pela maciez das trocas. Aristóteles em sua época visualizou esse movimento dizendo que: “Quanto a arte das permutas, seu ramo principal é o comércio, que consta de três partes: com transporte por mar, transporte por terra, venda no próprio local da produção”.[1] Tarefa cada vez mais arriscada de realizar.

Por natureza, o comércio é o lugar da satisfação das partes envolvidas. É verdade que existe a concorrência que impede os comerciantes de possuírem e praticarem uma ética comercial; mas, no fundo, é o respeito à liberdade a comerciar que todos põem acima de todas as divergências.

Karl Marx ao estudar o fetiche da mercadoria, identificou nela segredos que impõem o mistério de encobrir as características sociais do próprio trabalho para produzi-la. Mas que: “Quando o mundo parecia estar tranquilo, recorde-se, a China e as mesas começaram a bailar, pour encorager les outres (para encorajar os outros)”.[2] A citação se refere à Guerra do Ópio, iniciada em 1839, com a proibição  da China da importação desse produto oferecidos pelos comerciantes ingleses que, revoltados, destruíram diversas cidades chinesas impondo, em 1842 a assinatura do Tratado de Nanquim, obrigando o país asiático, além de entregar a ilha de Hon Kong, de abrir cinco novos portos para a comercialização. Na contemporaneidade prestes a completar duzentos anos da Guerra do Ópio, são as mesas dos Estados Unidos da América que, por meio da declaração da “Guerra tarifária”, começam a dançar.

Por que dançam as mesas norte-americanas? Pelo simples fato de sentirem que o solo sob os pés começou a mover-se. Bem comparado, o fato dessa dança desesperada acontecer agora, se deve à inversão do movimento que fez circular as mercadorias. Se a Guerra do Ópio aconteceu devido a proibição da Inglaterra exportar o produto intoxicante para a China, no momento são os Estados Unidos que, de cara feia, proíbem a importação de produtos chineses.

Quando na década de 1970, o Partido Comunista Chinês decidiu abrir a economia em 14 munícipios do país, viu-se com temeridade aquela iniciativa, tendo em vista que as empresas de produção capitalistas poderiam migrar para lá, firmar contratos por tempo determinado com o governo. O Problema parecia estar em que durante a validade do contrato os investimentos estrangeiros poderiam explorar a força de trabalho e venderem os seus produtos. Deu certo. Mantendo o controle sobre o processo produtivo e comercial, o mesmo sistema foi ampliado para todo o país. De olho na força de trabalho barata, o amplo mercado interno e externo, facilitado pela globalização, muitas empresas dos Estados Unidos migraram para a China e de lá passaram a exportar as suas mercadorias para o país de origem.

As mesas começaram a bailar desesperadamente quando alguns grupos, principalmente os da especulação, perceberam que as próprias empresas norte-americanas além de gerarem empregos na China  praticavam a concorrência com os restos das indústrias locais. A elevação brusca das taxas tarifárias representa uma tentativa desesperada de trazer de volta para casa as empresas que saíram do país.

Embora essas medidas de Ronald Trump pareçam estudadas e bem calculadas, elas representam um ato de desespero por avaliar que, a velha hegemonia devido a contradição principal da globalização, inverteu os papeis e, agora o senhor se tornou dependente do escravo que, com desenvoltura, sorriso manso e relações cordiais, quer afirmar-se também como senhor em um mundo com a economia globalizada.

Os Estados Unidos possuem duas armas importantes para se defenderem, a indústria bélica e o dólar, mas postas sobre uma mesa que sozinha dança pela sala, provavelmente sentirá, em breve, a impotência de ambas. Isto porque, declarar uma guerra armada contra a China não dá nenhuma garantia de vitória e, com os demais países negociando com as próprias  moedas, o segundo trunfo também não terá força de detenção do movimento contrário.

Quais os limites norte-americanos? Dentre os já descritos em outros textos, como o atraso tecnológico, a desindustrialização, o crescimento da pobreza interna e a incapacidade de competição rápida, terá agora, de imediato, que enfrentar a tendência recessiva da economia, o reposicionamento das bases militares dispostas no mundo e, manter a cara feia sem perder os aliados.

Parece que a tranquilidade chinesa de não ficar competindo na publicação de taxas de importação para saber quem cobrará mais, vai na direção de simplesmente buscar outros mercados para recolocar os 3% do PIB exportado para os Estados Unidos, o que parece não ser tão difícil de encontrar. Por outro lado, enquanto os governantes chineses ampliam os contatos, os negócios e as relações de investimentos com outros países, os norte-americanos interrompem relações, quebram acordos e ameaçam os aliados com bravatas, como essa de anexar o Canadá, comprar a Groelândia, tomar de assalto os minérios ucranianos e sair da OTAN.

A desmoralização do presidente que, com cara feia e truculência nas ordens, já se iniciou e tende a se avolumar. Primeiro porque não conseguiu a bravata de acabar com a Guerra entre a Rússia e a Ucrânia em um dia, assim como a imediata rendição do Hamas na Palestina e já são quase cem dias de governo, o que se ouve é a promessa de se retirar dessas intermediações. Por outro lado, internamente, vemos a reação das universidades contra a política negacionista e a perseguição aos estudantes e professores, fazendo-os pensarem em abandonarem o país; a proibição pelo poder judiciário da deportação dos imigrantes ilegais e a reação por meio das mobilizações populares. Somado a isso, há o crescimento da taxa desemprego, a elevação do custo de vida e as divergências políticas dentro do próprio núcleo dirigente da guerra tarifária.

E nós, diante de tudo isso? Dando “milho aos pombos”? Até quando assistiremos as mesas bailarem cada qual agarrado ao título de eleitor como a única arma a lançar mão para o combate que será ainda em 2026? Ou paralisados esperamos uma condenação de um famigerado que já está, certamente, com o pedido de asilo político preparado para fugir para a embaixada da Hungria?

A experiência nos mostra que não se recompõe uma porta arrombada com uma folha de papel, porque, a função da porta é proteger quem está dentro do ambiente. Se não há como fugir das circunstâncias históricas é preciso tomá-las como matéria e fazer delas as novas circunstâncias para fazer a história. A política é uma arte que oscila entre os tempos harmônicos e de guerra. Chegou o tempo da guerra, por enquanto é tarifária, dessa forma, o tempo, há tempo, deixou de ser harmônico. Por isso, cara feia pode ser fome, mas também de desespero. Contra a forma do imperialismo podemos dar comida, petróleo e minérios, como sempre fizemos; mas, contra o desespero da vida, segundo o filósofo Arthur Schopenhauer, oscila entre a “dor e o tédio”, o que faremos para enfrentá-los?

                                                                                   Ademar Bogo



[1] ARISTÓTELES. Política, p. 29.

[2] MARX, Karl. O fetichismo da mercadoria : seu segredo. In. O capital. Vol 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 80.

domingo, 6 de abril de 2025

O PERIGO DA FAXINA NO PARAÍSO


            Os assuntos chatos são como dores reumáticas, quanto mais o sujeito se move, mais incômodos aparecem. Pior ainda fica, quando as consequências se estendem para amplas coletividades. Platão em seu tempo já havia se dado conta que há dois tipos de humores: o bom e o ruim; com isso os indivíduos são diferenciados. entre: gradáveis e desagradáveis; uns riem da mesma situação que leva muitos outros ao desespero.

            Willian Shakespeare, ao escrever “O mercador de Veneza”, destacou curiosamente a momentaneidade do surgimento de figuras estranhas.  “Pelo deus Jano de dupla face, a natureza, agora, confecciona uns sujeitos bem curiosos: uns, de olhos apertados, riem como papagaio trepados numa gaita de foles; outros andam com tal cara de vinagre, que nunca os dentes mostram à guisa de sorriso, muito embora Nestor jurasse que a pilhéria é boa”.[1]

            A referência feita a Jano, o deus romano, responsável pelas transições, principalmente às que se referiam ao tempo do passado para o presente, como dezembro e janeiro, daí vem o seu nome e suas características, por ter duas faces: uma voltada para trás e a outra para frente. Desperta o interesse em ler a peça ou assistir o filme, para ver um mercador riquíssimo pedindo dinheiro emprestado para ajudar um amigo. Os resultados são perversos, pois as expressões de discriminação racial, violência, ódio, preconceitos, misturados com manifestações de amor, justiça e diversão, constroem as modulagens faciais, não mais de deus, mas dos seres humanos.

            Em nosso tempo, Jano resolveu fazer uma faxina no paraíso localizado na sede do império norte-americano. Para isso confeccionou governantes que, já não riem tanto com as desgraças alheias, senão que, com suas caras de “vinagre” azedas, sequer mostram os dentes, mesmo quando fazem chacota do destino alheio.

            A faxina humana começou por jogar fora pela deportação dos imigrantes transformados antes em prisioneiros; na visão das criaturas de Jano, o “lixo humano descartável” precisou ser retirado com violência. Ao mesmo tempo uma profunda faxina ainda em curso, pretendendo varrer embaixo dos móveis e tapetes, o que está sendo considerado como excesso de pessoas locadas em cada repartição do serviço público. No entanto, as vassouradas mais fortes buscam atingir o espaço do mercado, que, embora cheio de luzes, não consegue eliminar as sombras e as ameaças de criar uma crise de produção e consumo no interior do paraíso.

            Observando friamente, ninguém pode questionar a soberania de um país e, muito menos do paraíso. Acontece que neste caso Jano exagerou nas medidas e, ao invés de investir na confecção da face sorridente, colocou toda as suas habilidades para formar a face azeda de vinagre que passou a ameaçar o mundo.

            Inicialmente a faxina do paraíso está criando apreensão no mundo, pois não se trata de um mero “tarifaço” pessoal da figura de cara azeda; é uma imposição afrontosa coletiva de classe, ao modelo econômico do neoliberalismo, liderado pelos Estados Unidos da América desde a década de 1970 que, como toda criatura perversa um dia se volta contra o criador. Por isso Jano, nesse momento, ao invés de investir na face que olha para frente, obrigou-se a empenhar todos os seus esforços na face virada para trás, para forçar a transição em situação de crise virando as costas para todos os países do mundo.

            O tarifaço é a tentativa de criar um novo modelo, denominado de Neomercantilismo, sem, contudo, aniquilar o neoliberalismo, pois, será sustentado, principalmente pela Europa e pelos países emergentes que compõem o Brics (Brasil, Rússia, India, China e África do Sul, e outros). Esse modelo arcaico, pretende compensar todas as perdas do déficit comercial por meio da elevação das tarifas, como sendo uma punição a quem produz mais com custos e preços menores, daqueles praticados na sede do império da globalização. A perda concorrencial é evidente e, agora, Jano de cara feia, quer usar a força.

            Há poucos dias a Opera Mundi, ao acompanhar a Conferência sobre “Dilemas da Humanidade” realizada em São Paulo, divulgou o dado assustador que, nas últimas duas décadas, as dividas externas dos países em desenvolvimento, quadruplicou e atingiu em 2023, a cifra de 11,4 trilhões de dólares; segundo essa fonte, representa 99% das receitas de exportação desses países devedores. “Isso significa que cada dólar ganho com a exportação de bens e serviços é um dólar devido a um banco ou detentor de títulos estrangeiro”.[2]    

            Observando friamente, se todo resultado do comercio exterior dos países em desenvolvimento se destina a pagar dividendos da dívida externa, aos credores dos países capitalistas desenvolvidos, dentre eles os  Estados Unidos da América, o “tarifaço”, é uma medida que pretende, além de explorar ainda mais os pobres, fazê-los arcar com o déficit nas finanças dos países ricos e duplicar os ganhos dos credores. Para além disso, elevar os gastos dos países devedores com o pagamento das dívidas externas, a medida visa enfraquecer as instituições controladoras das relações comerciais mundiais, como a OMC e obrigar os produtores, no interior dos Estado Unidos, a produzirem e abastecerem o mercado local.

            Ocorre que, essas tentativas não dependem da simples vontade humana. Temos um exemplo brasileiro de um presidente eleito em 1989 que declarou serem os carros nacionais, verdadeiras “carroças” e, para controlar a inflação, confiscou cerca de 30% do PIB aplicado na Caderneta de Poupança. Dois anos depois de eleito, perdeu cargo por meio do impeachment. O fenômeno tende a se repetir com a política nos Estados Unidos. As reações populares demonstram que a faxina no interior do paraíso está incomodando os habitantes do reino.

            Mas é cedo ainda para delinearmos as consequências dessa desaforada criação de Jano que, pode estar carrancudo com a face que olha para trás, mas sorridente com a outra que olha para frente. Se os países mais afetados responderem com as mesmas medidas e reformularem a engenharia política, o império norte-americano poderá entrar em recessão e ficar totalmente isolado. Evidentemente, sobrará a alternativa da guerra mundial. Nesse caso, os países unidos poderão derrotá-lo definitivamente. Logo, as futuras gerações poderão recontar a história da destruição do paraíso a qual começou com uma desesperada faxina.

            Para as forças revolucionária, não basta olhar e torcer, pois, não se trata de um jogo entre os nossos inimigos. É preciso preparar-nos para entrarmos em campo, não para defender o mercado, mas, para aproveitarmos os conflitos entre eles e impulsionarmos a nossa própria transição.    

                                                           Ademar Bogo



[1]SHAKESPEARE. W. O mercador de Veneza.  http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000094.pdf