domingo, 23 de fevereiro de 2025

DE PERNAS PRO AR

         No ano de 1999, o escritor uruguaio Eduardo Galeano lançou no Brasil o livro com esse título: De pernas pro ar; nele, com o nome de “A exceção”, fez um destaque no formato de informe: “Só existe um lugar onde o norte e o sul do mundo se enfrentam em igualdade de condições: é um campo de futebol do Brasil, na foz do Rio Amazonas. A linha do equador corta pela metade o Estádio Zenão, no Amapá, de modo que cada equipe joga um tempo no Sul e outro tempo no Norte”.[1] Com o mesmo nome também existe um filme brasileiro, lançado em 2010, dirigido por Roberto Santucci que originalmente chamava-se de “Sex Delícia”, mas, após o resultado negativo de uma pesquisa de opinião, decidiram mudar o nome da obra.

               Em poucas palavras, a Linha do Equador, se pudéssemos vê-la, seria como um cinto colocado horizontalmente bem no ventre da bola do Globo terrestre e, serve, dentre outras coisas, para demarcar a divisa das duas metades, de baixo e de cima, marcando os Hemisférios, Sul e Norte. Como naturalmente já está lá, simbolicamente passou também a representar a concentração da riqueza e da pobreza mundial.

            Se quisermos tecer algumas outras relações, podemos dizer que o planeta também funciona dividido por duas grandes classes, tal qual se dá com a relação entre o capital e o trabalho, representados pela burguesia e o proletariado, nele a subdivisão atende pelo nome de Norte, no qual vigoram as potências capitalistas, como  os Estados Unidos da América, a União Europeia e o Japão e, o restante dos países, embora não estejam todos abaixo da linha do Equador, são considerados parte do “Sul global” países subdesenvolvidos.

            Nos interessa aqui, mais do que discutir o posicionamento das potências econômicas capitalistas que, como ocorre na luta de classes, nos conflitos entre as nações, os prejuízos das crises e das guerras, sempre devem ser pagos pelos mais fracos, apontar que, no Estádio “Zenão do mundo”, o Sul perdedor começará empatar e ganhar os jogos, nos quais serão disputados os interesses econômicos.

 Os Estados Unidos da América, nos últimos dois séculos, representam o país que mais se envolveu em conflitos no mundo. No entanto, apesar de toda truculência e vigilância intervencionista, começa a revelar que essa estratégia não tem mais sustentação. Segundo o Pentágono, há cerca de 865 bases militares norte-americanas instaladas em 135 países, com um contingente de 350 mil soldados habitando nelas.[2] Com a sofisticação tecnológica, a vigilância e os combates entre inimigos demandam uma nova estrutura de guerra.

O que está em jogo nas supostas mudanças de estratégia do novo governo dos Estados Unidos da América, em relação aos conflitos pelo mundo? Como já indicamos em outros textos, o imperialismo, nos moldes da velha Revolução Industrial, registrada em preto e branco, nesta fase do capitalismo mostra cansaço e, as desvantagens na correlação de forças mundiais estão postas sobre o tabuleiro. Para tentar se segurar ainda com alguma autoridade, além das ameaças, extradições, taxações e punições, o governo de Ronald Trump quer diminuir os custos da dominação e cobrar os prejuízos anteriores dos países aliados. Para ficarmos apenas nos dois últimos exemplos de custos a cobrar, a Ucrânia em praticamente 3 anos de conflito, recebeu do governo norte-americano, 175 bilhões de dólares em ajuda, mas está sendo convidada a devolver centavo por centavo. O segundo caso é o apoio dado a Israel no montante superior a 20 bilhões de dólares, para atacar covardemente a Palestina e, agora exige o território de Gaza como pagamento.

            Nessa nova estratégia podemos decifrar algumas outras intenções do império norte-americano. No primeiro aspecto, que envolve diretamente a Ucrânia, é fazer um acordo com a Rússia em busca de alcançar três objetivos: a) Interferir na relação entre a Rússia e a China, pelo simples fato de que a primeira é apenas uma ameaça militar, no entanto, a segunda está se tornado um inimigo economicamente poderoso, com raízes fincadas em todos os continentes; as duas potências juntas, com os poderes bélicos e econômico, podem enfrentar o resto do mundo; b) Diminuir os gastos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN – que reúne 32 países da Europa, onde os Estados Unidos investem por ano, 600 bilhões de dólares, mas que, pouco ou quase nada mais serve aos interesses estadunidenses, principalmente se o inimigo principal, imediato, de fato passar ser a China e não a Rússia; c) Implementar a tática da cobrança da proteção militar. No caso da Ucrânia deverá pagar os recursos investidos até aqui, pela política da extorsão, pela exploração mista dos minérios, principalmente o manganês e o alumínio; com isso, 50% desses produtos estarão, por prazo indeterminado comprometidos com a dívida de guerra. A mesma pretensão de Trump é com o assalto a Gaza; tendo em vista os ganhos com a reconstrução das cidades palestinas, por meio dos recursos recolhidos pela ONU, pensa ele, apropriar-se definitivamente daquele território e reaver os recursos financeiros destinados a Israel que, mesmo perdendo a guerra, teria uma base militar amiga estruturada no território alheio.

            Portanto, a imagem que podemos ter do mundo neste final do primeiro quarto de século é que, ele está mesmo de “pernas para o ar”. Imaginar que os Estados Unidos e a Rússia um dia pudessem ter um acordo de paz, seria como pensar em ver um leão e uma onça convivendo na mesma jaula. Por outro lado, considerar que a Europa seria abandonada à própria sorte, com o corte repentino da metade do orçamento anual da OTAN (600 bilhões de dólares) e, responsabilizada a organizar a sua própria defesa, também não estava no roteiro do filme “Sex Delícia” do imperialismo, que mirava apenas o prazer da dominação militar.

            Não nos enganemos, esses supostos acenos pela paz é para ganhar tempo e preparar a nova fase da guerra, isto porque, os conflitos de interesses antagônicos continuarão existindo. De outro modo, o velho império se deu conta que precisa recuperar o fôlego, pois, as lavaredas saem fracas  das narinas do dragão e já não intimidam o mundo como antes. A estratégia do império segue a linha do fortalecimento de si mesmo a partir das cobranças aos naturais aliados de fazerem o mesmo. Na hora precisa, se todos estiverem fortes, a junção das forças contra a China e a Rússia será automática. Provavelmente, o grosso dos investimentos serão feitos para manter aquelas bases que garantam a exploração e a apropriação das riquezas alheias.

            Dois fatores jogam contra a estratégia norte americana. O primeiro é que o acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia favorece a Rússia; esta, além de ficar com os territórios ocupados terá o alívio das sanções econômicas e ganhará tempo também para recuperar a sua economia e reconstruir o seu arsenal bélico para continuar sendo uma das grandes potências militares do mundo. Como as divergências continuam sendo com a velha Europa, pouco ofensiva, a tendência é manter-se como retaguarda armada da China. O segundo fator é que esse movimento para retomar as rédeas da dominação do mundo, já está atrasada. A china com 18 trilhões de dólares de Produto Interno Bruto – PIB - , nos próximos dez anos, tem  potencial de  ultrapassar os 27 trilhões do PIB dos Estados Unidos, que sofrerá revezes econômicos, devido a sua matriz produtiva movida a petróleo, as desvantagens tecnológicas e a incapacidade de acompanhar a concorrência no mercado mundial. Nesta última, o único recurso encontrado para enfrentar as disputas mercantis, é a imposição de elevadas taxas sobre os produtos importados.

            Para o nosso lado, os sinais de ficarmos de “pernas para o ar”, vêm de dois sinais de covardia emitidos pelo governo brasileiro: a) A baixa popularidade, evidentemente que merecida, pois, nada é feito que orgulhe os explorados, ao contrário, as políticas de preservação dos exploradores seguem mais seguras do que se tivéssemos com um governo de extrema-direita, senão vejamos: os juros, apesar da mudança do presidente do Banco Central, continuam ainda mais elevados; o preço dos combustíveis que influenciam na alta de todos os preços dos produtos dependentes de transporte terrestre e, apesar da “intervenção” na Petrobras, nenhum sinal de melhora;  o mesmo ocorre com o custo dos alimentos etc. b) Por outro lado, a Linha do Equador que divide o campo de futebol situado nas proximidades da Foz do Rio Amazonas, na qual se pensa perfurar poços de petróleo é mais uma contribuição equivocada e representa o enterro definitivo do compromisso desse governo com enfrentamento das mudanças climáticas. Se a energia produtiva do imperialismo é o petróleo, é evidente que, não importa onde esteja, lá estará a exigência, como ocorreu com o pré-sal, da obrigatoriedade de entregar o poço para o controle do capital internacional.      

            De pernas para o ar, portanto, está esse governo que ao invés de investir em políticas para desconcentrar a terra, taxar as grandes fortunas e criar alternativas de trabalho para as pessoas mais pobres, acomoda-se dentro das exigências das responsabilidades fiscais, distanciado das organizações que investiram tudo, acreditando em melhorias. Mas, pior que isso, de pernas para o ar estão as forças partidárias progressistas (já não sabemos se são), que ao invés de debaterem com a sociedade os problemas do país, gastam o tempo articulando candidaturas, no meio de um mandato de um presidente que vai de mal a pior. Tantas outras coisas estão de pernas para o ar que cada cabeça pensante pode indicar e atualizar a relação.

            Não teremos tempos fáceis pela frente, o importante é perceber que tudo tende a ficar ruim para todos. Como as organizações populares crescem mais em tempo de “vacas magras”, agora, que as forças, antes de esquerda, já não têm a oferecer e pelo que tudo indica, o ciclo da política eleitoral para as causas populares se esgotou, cabe saber o quê e em que direção iremos reiniciar a longa marcha. “A união faz a força”; mas é preciso ter uma razão para se unir.

                                                                                   Ademar Bogo



[1] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 27.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O IMPÉRIO DE TAMANCAS

 

             Em qualquer Dicionário informal, a expressão: “Subir nas tamancas”, significa irritar-se, perder a linha ou levantar o tom de voz. Ou seja, uma mudança repentina de comportamento indicando que o sujeito, não apenas ficou alterado, mas perdeu a compostura.

            O filósofo dinamarquês Kierkegaard, em 1841 escreveu o texto sobre O conceito de ironia e surpreendeu por torná-la uma grandeza conceitual, cuja característica no discurso retórico, está em dizer o contrário do que se pensa. Para situá-la basta entender que o fenômeno é o contrário da essência. Nesse sentido, as palavras que armam o espetáculo não expõem verdadeiramente o que as intenções representam. Então disse o autor: “Uma das  maiores alegrias  do irônico consiste em descobrir  em toda  parte estes pontos fracos: e quanto mais proeminente  é a pessoa em quem se encontram tais traços, tanto mais alegria lhe dá poder fazê-la de boba, tê-la em seu poder, embora esta não se  dê conta disso, de modo que  até uma pessoa eminente  em alguns instantes se torna um fantoche para o irônico, que a faz dançar como um títere, que ele maneja mexendo os cordões conforme deseja...” [1]

            No momento em que vivemos, o “novo xerife do mundo”, pensa utilizar-se da ironia para abobar a humanidade, com centenas de medidas e ameaças disparadas ao mesmo tempo. É evidente que o imperialismo norte-americano, na medida que o capital especulativo passou a vigorar como o senhor da acumulação, também feriu de morte a base produtiva e o poder político empresarial dos Estados Unidos da América. Como uma montanha rochosa não se transforma de um dia para outro em pedras moídas, a derrocada levou tempo, mas chegou.

            A lógica imposta pelo capitalismo desde a sua origem, baseada na acumulação e reprodução do capital, deu para algumas nações, em diferentes períodos, principalmente a partir da Revolução Industrial, o poder dos domínios econômico e político em partes determinadas do mundo. Como exemplo podemos citar a Bélgica, a França e Portugal que reinaram até a década de 1970 na África; no continente asiático foram os ingleses e os franceses e, na América Latina, desde 1823, sob a orientação da doutrina Monroe: “América para os americanos”, o domínio foi fatal e sanguinário, pois, a ilusão com a “democracia” norte-americana, ironicamente, como conteúdo sempre prezou pela defesa dos direitos humanos, da  liberdade, a organização política, social, econômica e cultural, mas, na essência sempre agiu por meio de controles totalitários, determinando cada gesto, com algumas poucas  exceções, dos governos teleguiados e intimidados.

            O que importa nesse momento, sem entrarmos nas especificidades das épocas, dos métodos e das táticas empregadas, na dominação política das américas, é entender que, independentemente dos bobos da corte, o capital tem vida própria; ele apenas precisa das pessoas que pensam a política para pressioná-los a agirem conforme as necessidades da expansão, acumulação e reprodução da riqueza; e o faz com tamanha velocidade que, as vezes, ficamos por muito tempo ligados ao fenômeno e esquecemos totalmente da essência dos processos.

            O surgimento do neoliberalismo na década de 1970, em meio a uma crise profunda do capitalismo mundial, pôs em movimento, por meio de um consenso entre os capitalistas, o fenômeno da globalização, com o modelo econômico neoliberal que anulou os limites das fronteiras continentais (sem abalar muito o controle político), permitindo que qualquer capitalista do mundo pudesse ir e investir em qualquer lugar. Sem perceber as consequências, com a globalização e o neoliberalismo, iniciou-se formação da grande contradição do imperialismo clássico, como já foi chamada de “fase superior do capitalismo”.

            A primeira grande vítima dessa engenharia política sem condições de enfrentar o furação liberal, foi a Alemanha Oriental e, logo em seguida, a União das Repúblicas  Soviéticas – URSS – que, em poucos meses, no início da década de 1990, desfez os seus laços socialistas, dando um passo atrás para, cada país entrar na dança das economias de mercado globalizadas.

            No entanto, se o cosmos é de todos, qualquer indivíduo “bem-sucedido”, pelo poder do capital, pode se fixar em qualquer lugar. Porém, arrombando as portas dos países, antes denominados de “Terceiro mundo”, não impediu que, por exemplo, a China e a Índia investissem em tecnologia e estabelecessem, por direito globalizado, as suas bases produtivas onde apenas reinavam as potências ocidentais. A Rússia, por sua vez, assumiu-se como a guardiã de todo o acúmulo alcançado em diferentes áreas pela antiga União Soviética e preparou-se para a resistência.        

            Por que então o presidente dos Estados Unidos da América, ironicamente, “subiu nas tamancas”, quando na verdade não subiu, apenas raivosamente passou a dançar com o incômodo calçado? Pelo simples fato que, enquanto o capital de seu país, acostumado a extorquir as nações pela especulação, com investimentos, principalmente na indústria armamentistas, os diversos países em ascensão investiram em tecnologia produtiva de bens e serviços. De tal modo que, a ironia da História é que, ao exigir que os outros deixassem as portas abertas, o império também teve de abrir as suas e, na atualidade, não pode fechá-las, pois não teria como sustentar-se economicamente. O que tenta fazer? Reajustar o aluguel dos inquilinos que utilizam o seu território, aparentemente, sem considerar que aquele país também é inquilino em outros tantos e sofrerá as mesmas taxações.

            Logo, as bravatas, ameaças e até mesmo as deportações de imigrantes ilegais, são latidos de um cão sem pelos, que causa repulsa a todos que o veem. Serve como disfarce para esconder que, as pernas cansadas fazem o andar mais lento arrastar as tamancas. As provocações encordoadas e as ameaças aos que estão com os pés calçados e preparados para uma corrida de longo trecho e alta velocidade, revelam a certeza de que ficará para trás nessa disputa, por isso tentará intimidar e multar cada um que passar na sua frente.

            O que temos de bom nesse cenário ruim? É que o imperialismo norte-americano pela primeira vez na História, se indispõem contra os seus principais aliados. A contradição principal promove os fenômenos, mas também expressa a sua essência. O velho Tio San já não dá mais a direção política a nível mundial sem reações, ao contrário, retira-se dos círculos de poder coletivo e, por outro lado, apesar dos avanços tecnológicos, retorna às matrizes industriais obsoletas do século passado. Esse poderia ser um alerta ao governo brasileiro que, ao invés de propagar a abertura de poços de exploração de petróleo na Foz do Amazonas, deveria investir em energia limpa, liderando assim a corrida, nessa era do antropoceno, de combate, não somente  ao aquecimento global, mas a ruina total do planeta.

            E, o que temos de ruim nesse cenário ruim? É que, a Revolução Industrial liberal capitalista continua avançando como revolução burguesa permanente. O capital por outras mãos, continua destrutivamente se reproduzindo e não haverá alívio, nem para o planeta nem para a humanidade. O momento exige capacidade, sabedoria e organização para escolhermos os inimigos contra os quais queremos lutar. Eles são muitos, mas, às vezes, o que aparenta por fora ser o mais forte, por dentro está todo corroído que já não consegue sustentar-se sobre os pés de barro e as tamancas de madeira.

            A ironia que fazia sorrir os dominantes, agora, alegra os dominados. É tempo de reação e não de acovardamento.

                                                                                                    Ademar Bogo

           



[1] KIERKEGAARD, S.A. O conceito ode ironia: Constantemente referido a Sócrates.2 ed. Bragança Paulista

Editora Universitária São Francisco, 2005, p. 218.