domingo, 17 de outubro de 2021

PÃO E REVOLUÇÃO

            Karl Marx, na posterior introdução à “Critica do Direito de Hegel”, no vigor de sua juventude, deu-se conta de que havia um travamento no processo de emancipação humana. Os limites do protestantismo e a relação de dependência da sociedade civil, do Estado, contribuíam para dificultar o avanço do processo revolucionário radical.

            Por sua vez, a perspicácia de Marx foi perceber que “As revoluções precisam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só é efetivada num povo na medida em que é a efetivação de suas necessidades”. E no final do mesmo parágrafo, após algumas indagações específicas, concluiu dizendo: “Não basta que o pensamento procure se realizar; a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento”. Temos, portanto que saber combinar a teoria com as necessidades.

            Para direcionarmos o entendimento dessa significativa observação, devemos proceder com o método filosófico de análise, separando a categoria superior, “revolução”, das categorias subordinadas, interrogando: O que é: “passiva?”, “material?”, “teoria?”, “efetivação?” “necessidades?” e “direção?”.

            Feito isto, podemos recorrer ao contexto no qual Marx estava inserido, como também procurar aplicar as mesmas categorias em uma realidade assemelhada, quando as religiões protestantes parecem assumir a hegemonia da alienação e a sociedade civil, ao invés de enveredar para a emancipação, regride e deposita no Estado toda a responsabilidade de impor a ordem coercitiva, para punir e refrear a força contrária e, com isso, as disputas se radicalizam em dois pólos favoráveis do capitalismo, como aconteceu na realidade alemã.

            Na medida em que, na atualidade, a categoria superior é despida de sua importância e distanciada das discussões, as categorias subordinadas perdem os poderes de importunar e, as palavras tendem a dizer apenas o trivial ou a considerarem o proposto como o real estabelecido possível.

            A direção, em se tratando de política é tudo. Isto porque, se as revoluções precisam de um elemento passivo, ou seja, a base material concreta,  não há como distrair as atenções para fora desse entendimento colocando na ordem lógica, realidade e teoria.

            Se temos a base material “passiva”, ela está a espera de ser agarrada, pelo sujeito ativo da revolução. Mas isto não se dá sem antes formular os pensamentos e consultar as necessidades e carências existentes nesta base. Essas necessidades, após serem teorizadas devem contribuir para que toda a realidade seja “compelida”, impulsionada ou arremessada a favor do pensamento revolucionário. Essas indicações não são impressões instituais. Marx, em 1843 vivia a ebulição das revoluções liberais da Europa e convivia com o atraso do país alemão.

            Há nessa descrição duas possibilidades de respostas para a pergunta “o que é necessidade?”. Certamente, não encontraremos nenhum indivíduo, politizado ou não, que não responda a esta indagação com o conteúdo evidente das carências sociais e, para nós, na atualidade, “pão” quer dizer tudo.

            Essa resposta substantiva, se apenas restrita ao “pão” é totalmente insuficiente e conformista. Para os cérebros mais atentos a preocupação vai muito além da necessidade. A fome nos mostra a situação de uma sociedade encurralada no degrau mais baixo da escada que mede o descenso da dignidade humana. É evidente que, a solução da mesma, embora seja uma emergência, não emancipa os famintos, assim como o direito à liberdade religiosa não emancipava os judeus na Alemanha. No entanto, o capitalismo decadente nos coloca cotidianamente a pauta das emergências articuladas entre si. Já não sabemos o que é mais grave, se a fome, a escassez da água, a queima das florestas, a perda da soberania, a violência ou a falta de trabalho, renda etc.

Para evitarmos o rebaixamento da teoria em direção à explicitação do desejo de caridade ou da assistência, como o máximo possível de ser proposto na política, devemos pensar no conjunto das emergências e necessidades individuais componentes da realidade social, mas que, em contato com a teoria devem apontar para a verdadeira emancipação.

            Chegamos ao grande limite do dilema posto acima. Se de um lado movem-se as forças interessadas em realizarem o pensamento assistencialista, atendendo as necessidades dos  famintos com o pão, de outro lado, “a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento”, fazendo com que ele se coloque a favor do movimento ascendente da transformação social.

            Em síntese isto tudo nos diz que, se entendemos as “necessidades” apenas como pão, trabalho, moradia etc., imaginamos, como minoria, galgarmos o ponto mais alto do Estado, com os pensamentos voltados para os debaixo, prometendo a eles o acesso aos direitos sociais, mas nunca a emancipação. No entanto, se consideramos que a “revolução” é a necessidade principal, devemos compelir as forças converterem a mesma em um direito. Logo, o faminto deve desejar o pão e aprender a desejar também a revolução. Assim como o desejo de quem se envolver para saciar a fome alheia deve ser convertido no desejo da superação do capitalismo.

            Não é mais possível atuar sobre a “realidade passiva”, com pensamentos de passividade. A falta de pão é a demonstração da verdadeira decadência de um sistema incapaz de alimentar os seus próprios reprodutores. A urgência do “dai o pão a quem tem fome”, não deve servir para rebaixar a teoria ao nível da passividade contemplativa da decadência.

            Os direitos devem ser vistos no conjunto. O impulso da solução de uma necessidade, deve compelir para enfrentar outras necessidades ainda maiores, principalmente porque, não temos apenas necessidades animais para suprir. Devemos dar sequência ao pensamento: “só com pão não somos nada e teremos que ser tudo”.   

                                                                                                                                                                                                                                           Ademar Bogo

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