Utopia e ideologia são palavras que representam fenômenos ambíguos e provocam na consciência humana ilusões e encobrimentos das causas que sustentam os desejos de alcançar aquilo que ainda virá. E, embora sejam duas forças integradoras, enquanto uma puxa para frente a outra empurra para trás.
A ideologia vista por este entendimento, representa a distorção
daquilo que é real. Atua por meio do discurso procurando sempre satisfazer os
interesses particulares utilizando-se da força coletiva. A utopia atua de
maneira inversa. Se a ideologia faz de tudo para esconder a realidade do lugar
real, a utopia faz de tudo para mostrar aquilo que ainda não existe em lugar
nenhum.
De modo geral, os dois fenômenos, utópicos e ideológicos,
são produzidos em todas as interações sociais que surgem e se desenvolvem, como
nos diz o filósofo alemão Gürgen Habermas, no “mundo da vida”, que envolve a
economia, o comércio, a indústria, a educação, a religião etc. Para nós
interessa discutir agora a presença de ambas na política.
Para melhor estruturarmos o aprofundamento filosófico
sobre os dois fenômenos, devemos usar aqui duas categorias: a primeira diz
respeito à “legitimação” e, a segunda, o “encantamento”.
Quando tomamos a legitimação como categoria de análise,
temos, logo ao lado, a categoria do encantamento que complementa a primeira com
a atração boquiaberta de seres interessados em desfazer a ocultação até então
proposta em vistas da superação daquele estágio aparentemente saturado. No
entanto, desconhecem os “boquiabertos” que o movimento das ideias e dos fatos,
atuam para deslegitimar o legitimado anterior, para estabelecer algo que deverá
ser deslegitimado amanhã. Assim ocorre com o encantamento que promete superar o
desencanto com a fragilidade da promessa estabelecida para desencantar.
A grande virtude da política é a capacidade de poder
fazer e desmanchar porque ela primeiramente é feita com ideias. Tudo passa pela
ideia antes de se tornar um medida política, que na campanha eleitoral conhecemos
como promessa. Neste caso, aquilo que é denominado como “a festa da democracia”
desencadeada pela força do voto, nada mais é que a comemoração da ideia
produzida pela ideologia de agremiações partidárias que encantaram parcelas das
populações a se deliciarem com a utopia ou lugar feito de promessas nunca
alcançado.
As eleições estão impregnadas de ideologia e utopia e, “a festa da democracia” a cada dois anos, tem
a intenção de fazer suportar a “política oculta” que funciona no “mundo da
morte” de pessoas, planos, vontades, desejos etc. Se assim não fosse as pessoas
votariam sempre nos mesmos candidatos e eles passariam a ser vitalícios nos
cargos legislativos e executivos.
O encantamento é uma necessidade na política como é o
romance na literatura. Somos humanos, precisamos fugir do real para que ele não
nos devore. A ideologia como força enganadora, cumpre o papel de, amenizar as
dores do totalitarismo econômico que não tem mandato a cumprir; do
totalitarismo racial que não alivia a discriminação da cor da pele preta; do
totalitarismo masculino que vê o feminino a matéria a sua presa de submissão;
do totalitarismo laboral que usa a força física e mental dos trabalhadores para
acumular riquezas; do totalitarismo cultural que inferioriza a maioria da
juventude negando-lhes o acesso às mediações culturais; do totalitarismo policial
que alveja os alvos de carne e osso como se fossem de papel, e tantas outras
formas que a ideologia eleitoral não deixa aparecer.
O que legitima então “a festa da democracia”? O
totalitarismo estrutural. Parece estranho, mas não é. O encantamento com as
eleições faz com que se deixe de perceber que as mudanças propostas não
oferecem perigo algum à ordem estabelecida. É assim que no capitalismo a
“democracia” legitima o totalitarismo. Manejado pelas elites ou por aqueles que
se valem das ideias para obscurecer a verdade, os ideólogos oferecerem ao invés
da superação das causas, apenas um breve
alívio das consequências.
“É o que temos”, dizem os ilusionistas buscadores de um
lugar real na estrutura de poder. A ideologia é uma força ilusionista para o
povo, por isso precisa encantá-lo e fasciná-lo para que acredite que as ideias
enganosas oferecem o “tudo de bom”. Em nome da utopia da liberdade, os
escravizados brasileiros suportaram 350 anos de escravização e, quando foram
agraciados com a Lei Áurea de 1888, um ano antes da proclamação da República,
deparam-se com a realidade e, a utopia imaginada tornou-se a ausência de lugar,
com um amplo vazio de possibilidades. Mas as elites não. Enquanto chicoteavam
no tronco e nos canaviais, os pretos maltrapilhos, os brancos faziam a
independência do Brasil, escreviam a primeira Constituição e modificavam o
código penal escrito anteriormente em Portugal.
A ideologia que leva a ouvir o clamor das urnas
eletrônicas, que festejam com música a confirmação de cada voto, cuja letra
diz: “venha, vote e legitime o legitimado”, ganhou também o apoio de todas as
forças partidárias; dentre elas, as mais críticas, agem como os abolicionistas
do passado: prometem igualdade, sem tocar na propriedade dos meios de produção;
justiça, sem efetuarem o julgamento e a condenação dos capitalistas causadores
da miséria; liberdade, sem garantirem o acesso aos bens materiais e aos meios
para garanti-la.
O totalitarismo capitalista, obscurecido pela ideologia
da “festa da democracia”, não pode impedir que se cultive a utopia que nos faz
acreditar, mesmo que seja em superações idealizadas, que o futuro poderá ser
melhor se for antecipado a sua construção. A democracia virá no dia em que o
voto será substituído pela ação que deslegitimará o legitimado e transformará o
encantamento ideológico em desencanto porque, todo o mal se fará passado e, portanto,
superado.
A consciência é a arma para combater a ideologia. Ver o
real e querer o ideal forma a conjugação do verbo lutar. Se o processo
eleitoral que afirma a democracia representativa ameaçasse e prejudicasse a
classe dominante, ele já teria sido extinto. E para aqueles que acreditam
derrotar a mesma classe dominante dentro da legalidade por ela instalada, nada
mais fazem que servir de amortecedores dos choques que poderiam causar uma
ruptura na ordem estabelecida.
Uma marcha que anda em circulo é apenas uma marcha sem
horizonte. Mas, uma marcha que anda para frente, mesmo que em linhas curvas,
faz do horizonte a sua meta que lá um dia chegará.
Ademar
Bogo
Autor
do livro “Moral da História”.
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