domingo, 22 de setembro de 2024

O NOBRE E O JUSTO

  

          Os filósofos sempre primaram pela educação. Aristóteles em sua ética a Nicômaco, após alertar que não devemos perder de vista a diferença existente entre os argumentos dos primeiros princípios e os outros que se viram contra eles. Dessa forma concluiu o filósofo: “Eis aí por que, a fim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos”.[1]

            Se os filósofos refletem através de temas, os educadores debatem sobre as concepções pedagógicas. Porém, não é possível escapar ao ponto de encontro educativo o qual trata dos bons hábitos. O nobre, destacado por Aristóteles, não se trata da nobreza adquirida por meio de títulos, mas dos valores morais comprometidos com a generosidade, a lealdade e a honestidade, condutores dos bons comportamentos. Da mesma forma, o justo, não significa a justeza de algo que se encaixa; neste caso ele representa, a justiça confirmada pela aplicação do princípio da “justa medida”, formada pelo entendimento pedagógico, de garantir os ganhos e minorar as danos.

            Há diferentes concepções pedagógicas voltados para a educação dos bons hábitos. De um modo ou de outro podemos afirmar que todas ela, por princípio. pregam a nobreza e a justiça para garantir a prática dos bons hábitos. No entanto, como vimos, na expressão aristotélica, de que há argumentos favoráveis aos princípios e os que são apreendidos e colocados do lado oposto a eles. É neste ponto que a pedagogia sai dos meios acadêmicos para encontrar as suas oposições, também pedagógicas, na formação dos hábitos comportamentais na escola da vida.

            Quando separamos os ambientes, não significa que haja de fato uma separação estanque na linha do conhecimento e formação das consciências. Demarcamos apenas a existência da mudança de sujeitos criadores das matrizes pedagógicas. Dessa forma, nos parâmetros do outro sistema, distante do nobre e do justo, vamos encontrar as diferentes pedagogias as quais nomeamos como: do capital, da exploração, da expansão, do envenenamento, da destruição e tantas outras que, por princípio, estruturam-se metodologicamente pela negação dos valores morais.

            Quando falamos em pedagogia do capital, facilmente percebemos que a centralidade desse aprendizado está centrada na lei do valor. Aprender a lidar com o dinheiro para fazê-lo render à custas do trabalho alheio. Comprar coisas, investir, poupar, sempre no sentido de garantir algum grau de acumulação de bens e propriedades, entende-se como correto. Para aqueles que mal se decidiram profissionalmente, o indicativo virtual do apresenta programas como do “Jovem empreendedor”, incentivando-o a cavalgar pelo caminho empresarial. Metodologicamente ensina a tornar-se patrão, explorar a força de trabalho de pessoas vistas apenas como colaboradoras.

            A pedagogia expansionista surge por meio da pulsão da acumulação. Feito um primeiro crescimento o capital encarnado nos desejos do capitalista, faz com que ele se lance em direção aos lugares que permitem rendimentos. Na visão universal, a indústria e o comércio conduzem o capital para afirmá-lo como o regente de um império. Assim nasce o imperialismo econômico. Na expansão particular, o avanço sobre os territórios, leva a jungir as propriedades para formarem grandes e expressivas posses. Em ambos os sentidos, a pedagogia da especulação e do ensino tecnológico, serve como suporte para que as ações tenham certa ordem sequencial e, a divisão social do trabalho preencha todas as lacunas dos serviços sujos prestados.

            Mas, há acima de tudo e, no atual momento do desenvolvimento do capitalismo, uma pedagogia que começa a ganhar força, a qual podemos chamá-la de “pedagogia destrutiva”. Esta, de algum modo vinha sendo aplicada, sempre que surgissem crises no crescimento econômico; as quais se baseiam no princípio da destruição dos produtos ou da infraestrutura e bens em geral, por meio de guerras ou de outros conflitos. Porém, essa pedagogia avançou e se qualificou metodologicamente para ensinar a atuar fora do mundo das mercadorias e, muito menos por causa da crise de crescimento econômico, mas, fundamentalmente pelo desejo da expansão gananciosa que chegou ao extremo de incendiar as florestas.

            A pedagogia destrutiva que ensina a usar o fogo como uma arma, revela que foi declarada a guerra do agronegócio contra as forças da natureza compostas pela biodiversidade e contra o Estado se os governantes não fossem tão covardes. Trata-se, portanto, da perda da soberania nacional, porque, a pretensão de planta soja e produzir carne bovina para as exportações, favorecem mais os interesses externos do que ao país.

            A pedagogia destrutiva desenvolvida pelas forças políticas negacionistas, ensina a cometer crimes utilizando  o fogo com arma; mas, há as partes coniventes que se associam pela colaboração ativa. Se compararmos a aplicação das pedagogias opostas, quando se quer educar positivamente, os recursos públicos são direcionados para construir escolas. Quando se quer educar criminalmente, incentiva-se a aquisição de armas e, no caso dos incêndios, liberam-se créditos para que os criminosos, com o dinheiro público, avançarem sobre as florestas.

            Ao governo brasileiro, falta o entendimento da “pedagogia da coerência” pois, quando fala em preservação da Amazônia e da emissão de gases metano CO4, produzido pelos animais e, o monóxido de carbono, exalado pelos veículos motorizados, como primeiro princípio, deveria reduzir e não aumentar os créditos agropecuários para o agronegócio. Neste ano de 2024, chegam a 508 bilhões de reais e, por outro lado impediria a exploração do petróleo e não como está fazendo, direcionando as puas perfuradoras para a Amazônia.

            Para não sermos coniventes com os crimes, seja o de genocídio cometido contra os palestinos ou do ecocídio cometido pelo agronegócio com o incêndio das florestas, devemos reagir contra a pedagogia destrutiva que transforma o crime em hábito. E não importa se o crime está sendo cometido em Gaza ou na Amazônia, importa é enfrentar, combater, destratar e condenar quem manda, quem executa e quem é conivente ao liberar recursos públicos para que, no baixar da fumaça das queimadas, nas primeiras chuvas,  repassem com os aviões semeando as sementes de capim, sobre os ossos e as cinzas daquilo que antes era a mais bela e mais diversa biodiversidade do mundo.

            Devemos perguntar ao governo brasileiro: onde estão as forças armadas que há dezenas de anos, em nome da soberania nacional, vigiavam a Amazônia, mas deixaram avançar  desmatamento, o roubo e a exploração de madeira, bem como, a se formarem miliciais armadas para assassinarem as lideranças, indígenas, sindicais e religiosas e, por último a incendiarem as florestas? A natureza clama por defesa; mas onde estão as forças de defesa? De que serviu até então a pedagogia dos treinamentos de combate nas selvas, se incapazes são de combaterem o fogo que dizima as florestas? Quando procurarem os inimigos entre as cinzas, encontrarão apenas as armas e a metodologia da pedagogia destrutiva.

                                                           Ademar Bogo  



[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martins Fontes, 2012. (Livro 1).

domingo, 15 de setembro de 2024

A VIOLÊNCIA DO FOGO


O fogo desde a pré-história, quando as crenças atribuíam a sua criação a uma divindade. Os gregos revelaram como as primeiras chamas chegaram até a terra com Prometeu. Por ordem de Zeus ele foi amarrado em uma rocha em companhia de um pássaro carnívoro, para comer-lhe diariamente o fígado pela travessura de ter se apiedado dos homens, dando-lhes o fogo de presente.

Posteriormente em Olímpia, cidade destruída na antiga Grécia, na qual se originaram os “Jogos olímpicos”, uma tocha foi acesa para simbolizar o vigor da juventude. Os cristãos adequaram uma simbologia para anunciar a vinda do salvador através da fogueira acesa na casa dos pais de João Batista. No seu oposto, mais adiante as mesmas fogueiras, na inquisição, serviram para queimar os hereges   

O general alemão Carl Von Clausewitz, no século XIX fez referência ao uso do fogo na guerra. Em seu livro “Da guerra”, de fundamental importância para quem deseja estudar os conceitos de tática e estratégia. Na elaboração não deixou de incluir a importância do fogo para a civilização. “A invenção da pólvora e o constante aperfeiçoamento das armas de fogo são por si sós suficientes para mostrar que o progresso da civilização nada fez de prático para alterar ou para desviar o impulso de destruir o inimigo, que é essencial à própria ideia de guerra.”[1] Ou seja, os saberes civilizatórios permaneceram no grau da brutalidade da destruição.

Em outra passagem o mesmo livro revela que o fogo poderia ser considerado uma arma. “As áreas cuidadosamente cultivadas são mais do que uma desvantagem para a artilharia, e as montanhas são piores ainda. Ambas proporcionam, evidentemente, uma proteção contra o seu fogo e não são, portanto, favoráveis a um exército cujo principal efeito seja o fogo.”[2] Nessa descrição podemos considerar a referência do “poder de fogo” da artilharia, mas também, perigo do próprio fogo como força de ataque.

Seja como for, é fácil de percebermos o perigo que representa o fogo indevidamente usado. O seu poder de destruição, a depender do vento, é mais veloz que os seus apagadores que, por segurança não podem atacá-lo de frente a frente. A técnica dos aceiros, tão comum desde a antiguidade, continua sendo a principal tática de combate em campo aberto. Eles como uma força de segurança preventiva, anula completamente a tendência à sua evolução em terrenos cobertas com matéria seca.

Por outro lado, o cuidado preventivo dos aceiros deveria ser, como qualquer outra arma que, por precaução se coloca longe do alcance das crianças, simplesmente porque elas não tem o discernimento nem conseguem avaliar a periculosidade da mesma. Evidentemente quando foge ao controle e ocorre um incêndio ou um ato de atentado contra a vida, são considerados acidentes e não crimes.

Embora tendo a sua utilidade para os agricultores para fazer a limpeza dos terrenos ou das pastagens, ele deve também ser considerado como uma arma de ataque contra a natureza. Nesse caso, um adulto que ateia fogo em período de estiagem, sabendo que as chamas podem alastrarem-se e tornarem-se incontroláveis; esse ato não pode ser considerado acidente, mas um crime contra a biodiversidade das espécies, humana, vegetal e animal.

O Brasil é um país de grandes extensões de florestas, inimigas dos grandes criadores de gado. Os territórios demarcados legalmente, impõem limites para devastação. Mas a lei tendencial da expansão do capital é igual em todas as situações; não importa se é na produção de um veículo de transporte, numa máquina ou num boi. Importa é materialidade da valorização do valor. Sendo assim, as matas tornaram-se alvos fáceis dos matadores.

O “Dia do fogo” criado em agosto de 2019, como protesto às leis ambientais, revela que as queimadas nada têm de ingenuidade, nem tampouco podem ser considerados acidentes os milhares de focos de incêndio espalhados pelo país. Com as proporções que essas ações tomaram, precisamos considerar que estamos enfrentando diferentes guerras cada uma com as suas devidas caracterizações: a primeira delas é de caráter militar, justamente porque o fogo nessas proporções, ser utilizado como uma arma de combate. Portanto, se as forças militares não tinham até o momento identificado um inimigo invasor e devastador do território nacional, já existe um e está solto pelos campos. Apagar os incêndios é uma tarefa de defesa do território e da soberania nacional.

Por outro lado há outro tipo de guerra de natureza “ecocivil”. Devemos pensar que existem leis reguladoras e de defesa do meio ambiente. Elas proíbem e preveem punições dos criminosos. Mas, se a leis não estão sendo respeitadas por uma facção social, há uma clara desobediência civil instalada contra, o que os juristas citam quando lhes é conveniente, é o “Estado de direito”. A ordem a ser respeitada não é apenas quando um grupo se lança contra as instituições políticas e jurídicas; os ecossistemas representam muito mais que instituições públicas ou privadas.

A ignorância tem sido posta como uma desculpa para amenizar os atos de barbárie. Mas, ignorar nunca sinônimo de violência, isto porque, devemos entende-la como desconhecimento. No entanto, quando o marido assassina a esposa não é por ignorância; quando o agronegócio usa os agrotóxicos e os governantes autorizam a usá-los, também não é. Da mesma forma que disparar uma arma contra alguém é violência, riscar um fósforo e segurá-lo aceso até ele queimar as primeiras folhas secas para daí dar início a um incêndio, é ainda mais violento, pois, além de ser consciente, o ato não ataca apenas uma pessoa mas milhares de espécies de vida.

Se estamos em guerra é preciso que as forças armadas assumam  o seu papel e enfrentem o fogo; as forças polícias prendam e punam os criminosos e, as autoridades governamentais desarmem os culpados confiscando suas terras. À sociedade civil cabe mobilizar-se contra a cultura do boi promovida por seus adoradores e recriadores dos mitos de que o “agro é tudo”.

As forças políticas que, escondidas atrás das fumaças das queimadas, gastam mais tempo em conquistar votos do que cuidar das pessoas que irão votar, cabe à responsabilização pela omissão de não atuarem preventivamente contra os verdadeiros invasores das terras públicas e dos povos nativos com o uso indiscriminado do fogo.

A civilização imbuída do uso da violência, há tempos vem mostrando sinais de decadência, porém, ao chegar ao alto grau de desrespeito de pôr a terra toda em chamas, levar à inalação insuportável de fumaça e, obrigar as espécies todas, banharem-se e beberem água da chuva tingida de fuligem, passou de todos os limites. Precisamos reagir.

                                                                                               Ademar Bogo



[1] CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 88

[2] Idem p. 406

domingo, 1 de setembro de 2024

HISTÓRIA E PRINCÍPIOS


            Na tradição da Filosofia do Materialismo Histórico, encontramos sempre a preocupação com a definição do sujeito da revolução, considerando os trabalhadores, as classes, as forças, as massas e, em último grau a parte maioritária da sociedade que precisa estar de acordo A participar de tudo. Isto nos diz que, não podemos pensar em transformações sem que haja um movimento de pessoas associadas, agindo com os mesmos princípios na mesma direção política.

            Karl Marx em 1847, ao escrever, “A miséria da filosofia” destacou que: “Cada princípio teve seu século para se manifestar: o princípio de autoridade, por exemplo, teve o século XI, assim como o princípio do individualismo teve o século XVIII.”[1] Para ele ainda, quando, obedecendo e sofrendo as consequências, era o século que pertencia ao princípio e não o princípio que pertencia o século. Qual é a diferença, no primeiro aspecto, era o princípio pronto e elaborado que fazia a história e, no segundo, a história ao ser feita fazia o princípio. Mas uma dúvida permanecia: por que tal princípio se manifestou naquele século? Para saber esta resposta, segundo Marx, era preciso examinar minuciosamente como eram os homens daquele século; quais eram as suas necessidades, suas forças produtivas, seu modo de produção; que matérias primas utilizavam; enfim, quais relações sociais e, também políticas articulavam essas pessoas. E, sua conclusão foi que, ao apresentar os homens como atores e autores de sua própria história, chegaremos ao verdadeiro ponto de partida, pois, assim abandonaremos os princípios eternos.

            Nunca é demais resgatarmos para sintonizarmos os sentidos, a definição gramatical de quem é o sujeito? “Sujeito é o elemento que pratica ou sofre a ação expressa pelo verbo de uma oração” e, o objeto, participa como “complemento na ação verbal.” Dito isto, voltamos para aos princípios e a história, considerando o tempo do capitalismo do nosso tempo.

            Há um fundamento filosófico no liberalismo que considera como princípio, o individualismo. Atraído pela liberdade a qual lhe é garantida pelas leis do Estado, o seu poder individual é visto como ilimitado, basta que, por direito arranje as mediações e, sua expressão pessoal se eleva acima da coletividade. É evidente que o individualismo nascido no século XVIII, foi renascido com novas características, no final do século XX, em cenários globalizados, dominados pelas corporações, o mercado e as big Tehs, ou empresas de tecnologia da informação.

            Nesse emaranhado evoluído de relações, encontramos o individuo com sua individualidade, ele, portanto, faz ações, como também sofre as consequências. Mas não somente ele, todos os “eles” estando envolvidos no mesmo processo, vivendo as mesmas influências, formam uma coletividade dispersa, marcada pelas mesmas reações, a favor e contra de si mesmo. Se prolongarmos um pouco o raciocínio e estendermos o alcance das coletividades alienadas do próprio comportamento e, considerarmos como sujeito uma nação, veremos que, os princípios neoliberais, coordenam, grosso modo, a história dos dois tipos de sujeitos: os proprietários das corporações imperialistas que pensam e impõem as diretrizes das ações a serem repetidas por terceiros, na economia, na política, na cultura, na religião etc., e, por outro lado, as imensas multidões, compostas por sujeitos sujeitados que “sofrem” e assimilam os princípios já elaborados.

            Ao levarmos esse entendimento para dentro da política, facilmente vamos encontrar as respostas às perguntas, do porquê as forças não se movimentam mais na direção da revolução? Ou mais especificamente, onde estão os sujeitos da revolução do século XXI? Tudo se explica se percebermos que, com tais princípios, os olhares foram invertidos e, o mundo passou a funcionar como se os indivíduos tivessem sido colocados de cabeça para baixo. Andam mas com os pés para cima.

            A realidade universal, particular e singular, nas visões invertidas, perdeu as contradições e assumiu o movimento da linearidade. Marcado pela ideologia das oportunidades, tudo depende do empenho de cada um. Na política, a gravidade dessa inversão é ainda maior. Visto de cabeça para baixo, o estado tornou-se um aliado das transformações sociais e, o capitalismo ficou ruim porque os trabalhadores e as forças de esquerda eram impedidas de governar. Como sujeitos de uma história com princípios elaborados fora dela, as coletividades, organizações de classe, lutas reivindicatórias e a participação nas ações, foram revertidas para as ações cívicas: votar; respeitar os feriados; realizar atos festivos nas datas comemorativas; doar coisas, alimentos ou fazer Pix do sofá da sala, para os atingidos das catástrofes ambientais, tornaram-se sinônimo de socialização. No mais, os governantes como sujeitos sujeitados que, em nome da democracia e dos trabalhadores assumiram os governos, acomodam-se aos consensos criados pelos sujeitadores, que transformam o próprio político em objeto de uso, tornando-o coparticipante da ação: para o agronegócio, queimar e devastar; para os bancos, lucrar; para o imperialismo colaborar para que o capital se aposse das riquezas restantes de todo o continente.

            Para fazer a história é preciso que os sujeitos não sujeitados se coloquem de cabeça para cima e elaborem os próprios princípios com o conteúdo do século em que vivem, com isso a própria história feita com lutas e confrontos, transforma a evidência do indivíduo, como a pedra que, colocada no muro, não desaparece, mas se fortalece se cooperar com as demais pedras.

                                                                                               Ademar Bogo

                                                                                                         



[1] MARX, Karl, A miséria da Filosofia. São Paulo: Global, 1985, p. 110.

domingo, 11 de agosto de 2024

A DIALÉTICA DO FEITICEIRO

 

            A política nas últimas décadas tem se tornado um espaço privilegiado para exercitar opiniões. As teorias não são mais formuladas em programas e manifestos, nem produzidas sobre temas, como fizeram os clássicos das revoluções que, após algum tempo, publicaram e tornaram “obras completas” escritas em dezenas de volumes. Pouco já se escreve sobre as contradições fundamentais e os aspectos fundamentais das contradições. Os textos seguem a ordem dos discursos formulados espontaneamente, baseados, não no movimento dialético das forças oponentes, mas na possibilidade de ganhar ou perder apoio. A rede social exige o cuidado com imagem e não com o intelecto.

            Os projetos de poder assumidos pelas permanentes vanguardas institucionalizadas, formadas por parlamentares eleitos que desejam eternamente serem reeleitos e, por isso, são forçados pelas circunstâncias a deixar de lado a divisão presente na sociedade de classes. Nos países capitalistas, essas forças conduzem os processos desconsiderando as contradições e, enfeitiçados pelo convite à governabilidade e, em nome da democracia, tentam enfeitiçar as massas para que sejam tolerantes. Marx e Engels apontaram no Manifesto Comunista que: “O sistema burguês de produção, de troca e de propriedade da sociedade moderna lembra um feiticeiro que já não consegue controlar os seus poderes infernais desencadeados por suas palavras mágicas.”[1]

            Por outro lado, os governantes progressistas, confirmados pelos pelitos eleitorais, nos regimes democráticos representativos, arrastam atrás de si dezenas de organizações e movimentos sociais, enfeitiçando-os com os brilhos e unções de seus representantes com cargos e recursos financeiros. Os que ficam de fora, por excesso de tolerância enfraquecem-se e tornam-se incapazes de marcarem posições significativas. Por sua vez “os feiticeiros” parecem esquecer que os mandatos possuem prazo determinado para iniciar e terminar; evidentemente que contam sempre com a recondução.

As eleições por sua vez, não eliminam os interesses das partes envolvidas, tanto assim que a condução da governança terá pela frente, a força da oposição, ultimamente com força de massa mobilizada. No entanto, se Marx se deu conta o sistema burguês e certamente quem governa é um “feiticeiro”, que já não controla os seus próprios poderes (não importa se é de direita ou de esquerda) precisa atrair para si os apoios para a reeleição. É aqui que entra o movimento da dialética, para mais ou para menos, ou seja, poderá tornar-se mais forte durante ou muito mais fraco, durante o mandato.

            Provavelmente quem está profundamente envolvido com o processo político eleitoral, não verá outra solução para fazer política, sem mirar os cargos nas estruturais governamentais. O equívoco não está em querer tomar o governo e governar. Essa estratégia foi usada inclusive em meio aos processos revolucionários vitoriosos, mas em aceitar o jogo das “forças infernais” e acreditar que, pelo impedimento de certos grupos representantes do capital serem eleitos, o mal será menor ou até mesmo controlado.

            Dominados pelo feitiço e por esse “ópio eleitoral”, as vanguardas institucionalizadas, enfrentam críticas de dois polos extremos que apostam no retrocesso. A extrema-esquerda caracterizada pela insistência em priorizar as tarefas futuras mas com plena desconsideração das tarefas do presente, impõe um discurso radical e totalmente desadaptado da realidade, por isso atrai poucos adeptos. Na outra ponta está a extrema-direita que desenvolve as tarefas do presente pensando em manter atualizado o passado pela continuidade da dominação econômica, do conservadorismo moral e cultural. No centro, esquerda e direita, costumeiramente aliadas nas disputas eleitorais buscam realizar as tarefas do presente para permanecerem no presente, fazendo o possível para não ferir os interesses dominantes e assistir as massas mais pobres.

            Considerando que esses governantes não se preocupam com o enraizamento orgânico de sua força, sustentam-se apenas na opinião pública favorável. Mas a opinião é como o sabor do café matinal: um simples descontrole de um ingrediente muda tudo. Logo, a democracia representativa é favorável para quem possui popularidade, por isso ela tenderá a ser cada vez mais populista. No entanto, esses processos eleitorais são cada vez mais de alto risco, por serem vigiados e contestados ferrenhamente pelas forças imperialistas, que como “força infernal” atuará sempre imensa por meio de farsas e tragédias. Quando as forças de direta ganharem a democracia será consolidada, quando perderem, contestarão e forçarão os resultados a seu favor.

            Na medida que as forças de “esquerda”, investem somente em eleições, se desmobilizam e não há como, desorganizadamente, enfrentarem as investidas e os protestos da extrema-direita. Falta, portanto, dar-se conta de que, para além das três forças postas atualmente no cenário, é preciso contemplar a quarta possibilidade de construção, que é a força revolucionária. Esta deve caracterizar-se pela realização das tarefas do presente para alcançar o objetivo futuro de superação do capitalismo no futuro. Metaforicamente podemos imaginar que, se as três posições, de algum modo, enfeitiçadas, circulam esbravejando na base da escada, as forças revolucionárias devem subir nela e seguir decididamente para chegarem no topo.

            Podemos concluir dizendo que, não basta combater os feiticeiros do sistema de produção e da política que viciam as massas com o “opio eleitoral”; é preciso dar um passo à frente no caminho da superação da feitiçaria capitalista, a verdadeira religião da classe dominante e seus aliados. Agarrar com força todas as tarefas do presente, com a franca decisão de alcançar as condições para realizar as tarefas do futuro, é, provavelmente, a decisão mais urgente a se tomar.

                                                                       Ademar Bogo



[1] MARX/ENGELS. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global, 1984, p. 23.

domingo, 4 de agosto de 2024

INTERESSES E DIREITOS

                               

            Embora no interior do conceito de “democracia” a ideia estampe um desejo comum, na realidade, interesses e direitos obrigam-nos a dizer que vemos o mesmo conteúdo de modo diferente, isto porque, ela nunca foi o “governo do povo”. Aristóteles já alertava no seu tempo sobre os três tipos de governos possíveis, compostos nas três formas: Monarquia (governo de um só); Aristocracia (governo de um grupo) e, Democracia (governo de muitos, mas que na prática tornar-se-ia o governo de um grupo).“Distinguimos, em nosso estudo das constituições, três constituições puras: a realeza, a aristocracia, a república, e três outras que são um desvio: a tirania para a realeza. A oligarquia em relação à aristocracia e a democracia quanto à república”.[1] No entanto, para o filósofo a democracia, apesar de tudo era a forma menos pior.

            Na contemporaneidade somos constantemente abalados com o terror de que “a democracia está ameaçada”. Não deveria ser assim, porque, se ela “emana do povo”, o governo da maioria, em circunstância alguma, poderia ser abalado, isto porque, pela simples força em ação, a maioria sufocaria a minoria inimiga. Acontece que a maioria democrática em nosso tempo, aprendeu a lutar pelo poder com a simples presença nas urnas para depositar o voto a favor de um representante capaz de propor e garantir os direitos fundamentais. No entanto, de seu lado, a minoria articula-se enquanto elite, convoca as forças armadas para defendê-la e utiliza os meios de comunicação para convencer os pobres a ajuda-los a defender os interesses burgueses.

            Já analisamos esta tese de Karl Marx, mas nunca é demais recolocá-la: “No mercado de mercadorias apenas se confrontam os possuidores de mercadorias, e o poder que exercem uns sobre os outros é somente o que deriva de suas mercadorias”[2]. Isto nos remete de imediato a sabermos, se o poder que disputamos nos processos eleitorais está de fato situado na política ou, pelo contrário, encontra-se materializado principalmente na estrutura econômica da sociedade? Dada a resposta saberemos se o poder “emana” das pessoas ou das mercadorias ou outras formas de riqueza.

            Quando desprezamos o poder da riqueza, personificada nos “ricos”, seja ela na forma de mercadoria, dinheiro ou capital, ao partimos para as disputas políticas com eles, procuramos convencer-nos de que teremos, dentro da ordem, as melhores propostas e possibilidades para superarmos as diversas crises. Se assim pensamos, desconhecemos que não foram os trabalhadores que criaram as crises e, sendo elas estruturais, por maiores sucessos que tivermos, elas retornarão e corroerão a nossa credibilidade, invertendo-a, pelo voto ou pela força de golpes de Estado, para colocá-la abaixo dos cinquenta por cento e apagarem os pequenos avanços conquistados no campo dos direitos.  

            Desde a Antiga Grécia a república e a democracia são as melhores referências políticas civilizatórias; foram elas inclusive confirmadas pela Revolução Francesa de 1789. De lá para cá os parâmetros para organizar e gerir o Estado capitalista quase sempre teve as eleições como sinônimo de vigor dos processos democráticos. Tanto é verdade que se confirma se um governo é democrático, se ele passou, foi aprovado e respeito o processo eleitoral.

            No entanto, apesar desses anseios e demonstrações da vontade soberana, as democracias não conseguiram, de forma permanente, sustentar e proteger a vontade da maioria nem quando estiveram em vigor e, pior ainda, quando as intervenções tirânicas, na forma de golpes interferiram para garantirem os interesses da minoria. Exemplo disso podemos confirmar observando a história da República brasileira. Grosso modo, em 135 anos, tivemos, pelo menos, dez golpes de Estado, representando, em média, um a cada treze anos e meio.

            Diante disso, é importante perguntar: se a democracia é o melhor regime, defendido e legitimado pela maioria dos cidadãos de um país, por que, de tempos em tempos acontecem as violentas recaídas para o totalitarismo e, mais ainda, por que a maioria da mesma população não defende esse bom regime como princípio fundamental da civilização de um povo?

            As respostas podem ir em diversas direções, aqui vamos sintetizá-las em quatro fatores fundamentais:  O primeiro diz respeito à supremacia do poder da riqueza, o qual caracteriza a naturalidade da sociedade desigual, devendo ela, ordeiramente, funcionar e garantir à minoria a supremacia dos seus interesses sobre a maioria. O segundo fator está ligado à natureza perversa da civilização, que não consegue seguir em frente sem lançar mão da violência. Esta pode estruturar-se por meio da articulação das forças internas de um país ou pela interferência direta do imperialismo. E, em terceiro lugar, a fragilidade na forma de estruturar a democracia representativa. Por natureza ela desautoriza a participação permanente da maioria que a afirmou pelo voto, dando condições para que os políticos eleitos formem grupos oligárquicos, capazes de elaborarem leis e efetuarem reformas que chegam ir contra os direitos da maioria da população. Diante dessa desmobilização, a maioria anterior torna-se minoria posterior. O quarto fato diz respeito a unidade entre a riqueza e o seu possuidor. Não é possível alcançar a mais simples justiça social sem desencarnar o capital do capitalista e, por essa razão nunca se poderá dizer que este último seja um democrata aliado dos trabalhadores.

            No capitalismo, a democracia, mesmo na forma representativa se mantém, enquanto garante os interesses da classe dominante. As aristocracias formam-se no interior dos governos trocando apoio por ministérios e, no parlamento por meio de “bancadas identitárias” seguindo sempre os interesses e privilégios de grupos minoritários articulados pelo grande capital.  

            Por mais que acreditemos na democracia, sem organização suficiente defendê-la contra o imperialismo, a classe dominante com seus grupos oligarcas e totalitários, a sensação será sempre, que a casa reconstruída na várzea pode a qualquer momento ser levada pela enchente e arrastar para longe os esforços ali empreendidos. Sabendo disso, deveríamos então desistir de lutar por melhorias, sendo que tudo poderá ser arrasado na década seguinte? Não, ao contrário, a maioria que se esforça por estabelecer a ordem democrática deve também empenhar-se na sua preservação. Para que isto ocorra, é preciso organizar-se para uma vez constituída a maioria, jamais deixar de sê-la. No entanto, para que isso ocorra é preciso, com essa força, empenhar-se todos os dias, para tomar das mãos da classe dominante as mediações que permitem a ela voltar para implantar o totalitarismo.

                                                                                               Ademar Bogo



[1] ARISTÓTELES. Política (livro VI). São Paulo Scala, 2008, p. 169.

[2] MARX, Karl. O capital. Vol. Rio de Janeiro, 1996, p. 180.

domingo, 21 de julho de 2024

ACASO E CERTEZA

 

            O acaso é avaliado no senso comum como “sorte” ou milagre. Na filosofia materialista ele tem um significado bem diferenciado e, aplicado o mesmo conceito à política, chega-se ao entendimento de vê-lo como necessário, para que, convertido em impulso, abra novas perspectivas para frente. Karl Marx desvendou a importância desse elemento, ao escrever sobre a Comuna de Paris de 1871, dizendo que a história seria fácil de ser levada adiante se as lutas fossem sempre vitoriosas, porém: “(...) a história passaria a ter um caráter muito místico se os ‘acasos’ não desempenhassem nenhum papel”.[1]

            O acaso não deixa de ser algo inesperado que se forma e atua como força dinamizadora nos conflitos modificando totalmente a correlação de forças. No entanto, é preciso estar atentos porque eles são instantâneos e, ao mesmo tempo que podem contribuírem para que surjam os avanços, agregando novas vitórias, também podem empurrar e impingir ao movimento profundas derrotas.

            Se o acaso não pode ser previsto, ele deve ser esperado. Por esta razão é que a força dirigente de qualquer processo político, reformista ou revolucionário precisa ter um alto nível de consciência e preparo teórico para não deixar passar certos momentos decisivos. O exemplo ilustrativo que costumeiramente que usamos para discutir esse tema é o da Revolução nicaraguense em 1979.

            Desde 1920, quando o camponês Augusto César Sandino decidiu formar um grupo armado para liderar a resistência contra as forças militares do imperialismo norte-americano, que ocupavam o país, vindo a expulsá-las em 1933. Logo após o acordo de paz, Sandino foi assassinado e instalou-se no país uma ditadura militar, liderada por Anastásio Somoza durante quase quarenta anos. Para enfrentar o regime totalitário, em 1961, alguns jovens combatentes como, Tomás Borges, Carlos Fonseca e Carlos Mayorga, fundaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), com a tática inicial de organizar a população em sindicatos, associações e desenvolver tarefas de alfabetização  organização de núcleos para discutir o projeto de libertação socialista.

            Em meio à repressão intensa, a Frente Sandinista, atuou por 17 anos desenvolvendo atividades educativas e combates armados, sem conseguir desestabilizar o governo, até que, em 10 de janeiro de 1978, um fato simbólico ocorreu e a população mobilizou-se dando início à insurreição. O assassinato pelas tropas de Somoza do jornalista combativo, Pedro Joaquín Chamorro, serviu de impulso para desiquilibrar a correlação de forças que até favorecia a ditadura. Com o apoio da população a FSLN conduziu os enfrentamentos, até que, em 19 de julho de 1979 a revolução foi vitoriosa.

            O acaso, portanto, não faz o acontecimento todo, senão que, ele é um acontecimento dentro do processo maior. A morte do jornalista foi tomada pela população, como um grave atentado contra a os direitos humanos e motivou as massas a irem à luta.

Ao observarmos aquele processo e outros tantos, os momentos decisivos é que levam o movimento revolucionário ganhar força. Mas, o detalhe principal não está na formação do acaso, e sim na capacidade para tomá-lo como impulso motivador das mobilizações. Quando ocorre um fenômeno político e a população em geral se comove, mas não se mobiliza contra os culpados, significa que não há organização nem liderança política preparada para convocar a população a ir para o enfrentamento. Isso pode ocorrer com uma invasão de um país, um atentado contra a vida de um candidato à presidência de república uma contaminação de um rio etc.

Quando a classe dominante pensa a política, seu objetivo é garantir a continuidade da dominação, por isso, enfrentam militarmente as mobilizações, as greves, ocupações de terra etc., com a determinação de restabelecerem a ordem que favorece os seus interesses. Quando os trabalhadores pensam a política, deveria ocorrer o mesmo e objetivar alcançar a libertação, provocando a desordem daquela ordem, para organizar uma nova ordem.

Esse indicador alerta para cuidar do reconhecimento das crises estruturais e entender que o projeto de dominação nunca aceitará a libertação das massas populares. Logo, é preciso confrontar a ordem capitalista com a ordem socialista. Eles querem isso, nós queremos aquilo e, ambos os lados se preparam para garantirem os seus objetivos.

Pela teoria da organização política, sabemos que os processos pré-revolucionários são longos, difíceis, confusos e cheios de frustrações. No entanto, quem assim entende, mesmo no descenso, não deixa de pensar na revolução. Metaforicamente comparamos  a alguém que, ao cair em um fosso profundo, salva-se porque fica enroscado à meia altura, mas, ao tentar subir, desce ainda mais, chegando ao fundo. Naquela situação todas as suas forças se concentram em encontrar um jeito de sair daquele lugar e chegar ao alto. Nessas tentativas podem ocorrer os acasos, alguém passar ali e vê-lo, ou ele mesmo encontrar algum objeto que lhe sirva de apoio para escalar aquela altura, subindo palmo a palmo pelas paredes.

O acaso está intimamente ligado com o querer. Como disse o filósofo Lúcio Aneu Sêneca, preso em Roma no ano 65 pelo imperador Nero e morto na prisão: “Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde vai”. As crises do capitalismo por si mesmas não levam os trabalhadores para o socialismo. É preciso desejar profundamente superar o capitalismo e lutar para que isto aconteça. Não importa quanto tempo o barco ficará girando enquanto o vento não soprar na direção para a qual queremos ir, importa é estarmos prontos, organizados e atentos, para quando ele surgir, rumarmos para o destino desejado.

Com esse entendimento, tudo se simplifica. Revolta, revolver, revolução, revolucionário, são palavras que possuem a mesma raiz. Se apenas queremos o imediato, vivemos e morremos por essas realizações. Se nunca pensamos em insurreição, nunca haverá uma oportunidade favorável que nos conduza a ela. Portanto, para ser revolucionário, não precisa deixar de comer, morar, se mover, procriar e nem lutar por isso; mas essas reivindicações, em certo grau, pertencem também aos animais, ou seja, são direitos de qualquer ser vivo. Para os humanos a revolução é um direito social. Lutar para realizá-la é um direito que precisa ser colocado junto aos outros. Assim entenderemos que, se não podemos ficar um dia sem comer, também não podemos ficar nenhum dia sem lutarmos e organizarmos as forças para a insurreição revolucionária. Se queremos e desejamos com vigor, dezenas de pequenos acasos, plasmados pelas injustiças sociais, ocorrem todos os dias; basta tomá-los como pontos de revolta que a revolução se põe em movimento.

A rebeldia é como a respiração. Se respiramos mantemos o corpo vivo, se nos rebelamos mantemos o processo revolucionário vivo. O oxigênio para o corpo está no espaço como no espaço estão os acasos cotidianos para as revoltas. Basta fazer com naturalidade que o extraordinário acontece.

                                               Ademar Bogo



[1] MARX, Karl. Cartas a Kugelmann. In Marx/Engels. Obras escolhidas. T. 3. São Paulo: Alfa ômega, s/d,p. 264.

domingo, 7 de julho de 2024

A DIREITA DA DIREITA

 

             Nestes tempos de motivações confusas, as ideias circulam sobre a realidade universal, de tal modo que, podem elas estarem corretas em suas definições ou representarem exatamente o seu contrário, dando a conhecer apenas falsas impressões e erros. O alerta pode nos vir da filosofia popular, quando define as visões sobre as carências que: “Em casa onde falta o pão, todos gritam e ninguém tem razão.

            A filosofa Hannah Arendt, ao discorrer sobre “O que é a política?”[1], destacou que a filosofia tem pelo menos duas razões para não se limitar em explicar, para não incorrer em erros, de onde surge a política. A primeira, diz ela, é não concordar que no homem há algo político que pertence a sua essência, isto porque, “o homem é apolítico”. Portanto, não nascemos políticos, nos tornamos políticos. Não nenhuma substância política original, isto porque ela nasce a partir da construção das relações sociais. A segunda razão, diz respeito ao equívoco de pensar que as crenças são monoteístas e que as concepções religiosas defendem a criação do homem como imagem e semelhança e, que os demais homens tornam-se a repetição bem-sucedida da criação. Na verdade, aquela imagem solitária (Adão) do ser criado, não repercute como unidade dos seus descendentes, ao contrário, de um modo ou de outro, cotidianamente há o movimento da “luta de todos contra todos”.

            Quando analisamos a política, não como essência humana, mas como prática social, percebemos que ela se move, com, pelo menos, dois conjuntos de forças, geralmente classificadas de “direita” e “esquerda”. Por sua vez, ao tomarmos a religião como elemento de estudo, verificamos que ela também funciona com agrupamentos e, se quisermos, referência de concepções morais, há os progressistas e os conservadores. Sendo assim, além de, entre elas terem os ensinamentos da educação em comum, elas também pleiteiam a liberdade de expressão.

            Considerando o princípio do direito a divergir, a liberdade aparece nas atitudes e posicionamentos no interior dos próprios agrupamentos. Na política, o normal é formarem-se facções e tendências e, embora todas elas estarem abrigadas no mesmo partido, disputam o poder dentro deles como se fosse uma verdadeira guerra, na história da esquerda, após a Revolução Russa de 1917, temos péssimas lembranças a serem arquivadas. Da mesma forma, as seitas religiosas, apesar de todas almejarem a salvação, cada uma projeta o criador do mundo ao seu modo.

            Mantendo-nos no eixo da política, poderíamos considerar que, se as forças de esquerda em busca de chegarem ao socialismo, divergem e lutam entre si para demonstrarem quem tem razão, as forças de direita agem para manter o capitalismo e eliminar aqueles que o querem superar. Portanto, a diferença é que, os partidos de esquerda, facções e tendências, quase sempre, funcionam como as religiões, defendem, aparentemente a mesma finalidade, e procuram aliados, segmentos sociais e entidades de classe para sustentarem as suas posições.

            As forças de direita compreendem a política pela concepção utilitarista. Procurando vê-la como deve ser o movimento das forças e as práticas dos atos no tempo presente. No utilitarismo econômico, desde as Revoluções Liberais de 1848, na Europa, quando se afirmou o funcionamento do Estado  capitalista, com a independência dos poderes e o Direito Positivo, como legalização da ordem, a burguesia ocupou-se em direcionar a produção da riqueza pela reprodução do capital. O Estado sempre esteve voltado para assegurar o poder de classe nos tempos de crescimento e de protestos trabalhistas, como também, nos períodos de crises de crescimento e expansão do capital.

            Mas eis que em certo momento os capitalistas criaram sistemas autônomos e, por meio deles, passaram a enquadrar o Estado, primeiro, para que aceitasse o poder paralelo do capital poder ir a todos os lugares; segundo que se ocupasse do controle do seu próprio interior, mantendo-se com os recursos que arrecada. Portanto, se as divergências eram comuns na tradição da esquerda, agora, começamos a perceber, pelos processos eleitorais na Europa, que elas passaram existir também entre as forças da direita.

            São vários os fatores que sustentam as divergências, elas vão, desde a disputa de interesses entre o capital produtivo e a especulação, até o controle das instituições e a preservação das reservas naturais. Mas como explicar a inversão de comportamento, daquilo que era feito silenciosamente ou, no máximo, com o abafamento das reações com a repressão policial, ter se tornado movimento de massas de contestação a favor de posições desumanas, antiéticas, racistas e nacionalistas?

            Voltemos ao início. As pessoas têm em sua essência, não a política, nem a religião, estas devem ser acrescentadas pela educação participativa na sociedade; mas o germe da divergência lhes vem, da radicalidade das posições, não importa se de esquerda ou de direita.

            É ingênuo e desrespeitoso intelectualmente afirmar que “não há mais educação política”. Pode não haver mais no interior daquilo que ainda se ousa chamar de esquerda, totalmente inserida na ordem capitalista, gerindo o instrumento para dominar a classe trabalhadora. No interior das forças de direita, há muita educação e toda ela voltada para os objetivos históricos de defender o capitalismo. Com isso promoveram o encontro dos mitos humanos com os mitos divinos e, daí vêm as razões para as divergências que incentivam e promovem a “luta de todos contra todos”.

            Há posições políticas postas em discussão que no passado criariam vertigens em setores intelectualizados e movimentos populares organizados, no sentido de serem “as alianças com as forças de centro obrigatórias”. Parece não significar que estas são parte constitutiva da direita. De fato, encontra-se ela no campo da produção e, embora reconheça que certos direitos sociais não podem ser abolidos, age sempre em defesa do capitalismo. A parte repugnada é a extrema-direita tida como força educadora da crença de que o bem precisa combater o mal. Exemplo dessa separação parasitária do Estado é a burguesia agrária do agronegócio. Ambas as partes aproveitam-se o máximo das políticas públicas e subsídios, mantendo as posições a favor e contra o governo.

            A pergunta é incômoda, mas precisa ser feita: Onde estamos nós? Construindo alianças com a “direita de centro” nos confundindo com ela, defendendo a ordem, o Estado de direito, a exploração da força de trabalho, tecendo a crítica às seitas religiosas porque avançam e arrebanham cada vez mais forças para a política etc., ou, confiantes de que os processos eleitorais irão nos assegurar os direitos ameaçados pela extrema direita nos calamos já sem identificação?

            Estar em condições confortáveis não significa estar na posição certa. Se compomos qualquer uma das duas opções acima, estamos atuando no campo da direita ou das direitas, isto porque, quando governamos, em nome da liberdade política, mantemos o totalitarismo do capital, quando não governamos, tememos a expansão do totalitarismo também para a política e lutamos apenas para voltar à posição anterior.

            Em síntese, o suposto aparecimento da extrema-direita no mundo se deve ao escondimento ou desaparecimento das forças de esquerda. Não tendo um inimigo à altura, pela lei da concorrência, as divergências na classe burguesa afloram. Sem ocupar o verdadeiro lugar de ser força antagônica aos capitalistas, não haverá resistência e nem evidência de luta de classes.

                                                                                                                                                                                                                                                                    Ademar Bogo   



[1] ARENDT, Hannah. 3 ed. O que é política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.