Sempre que fazemos análises conjunturais, não escapamos
das referências históricas, sejam elas mais recentes ou mais antigas. Muitos
elementos se cruzam e, no final, aparece um produto na forma de um texto que registra
as compreensões produzidas. De certo modo, na pressa ou na preocupação com a
centralidade dos fatos, deixamos escapar a percepção se aquele resultado é o
reflexo de nossa vontade ou de nossa consciência.
Para pensarmos sobre estas duas categorias, embora a
vontade seja um dos momentos da consciência, mas, tomada em separado ela é uma pulsão
voltada para a realização de certos desejos favoráveis aos interesses imaginários;
imitando a projeção de algo a vir a ser do próprio gosto.
O gosto investido na democracia representativa é sempre
burguês. Os trabalhadores ao se apossarem das estruturas reproduzem, com seus
mandatos, os regimes como se fossem vícios insuperáveis. Essa imutabilidade do
vício, ao fixar-se nas ideias, leva a repetir os discursos com os mesmos termos.
O filósofo Georg Lukács captou esse itinerário possível, ao dizer que: “Desse
modo, a história é entregue como tarefa ao pensamento burguês, insolúvel”.[1] Disso devemos deduzir que,
não importa quem executa, mas de onde vem as ideias a serem postas em ação. Com
isso deixa-se passar o entendimento sobre a origem das configurações sociais
reais e, adota-se a visão formalista de que há coisas de Estado, intocáveis, e,
outras, na esfera de governo, passageiras.
O grande dilema para Lukács, na sociedade movida pelo
capital, é não perceber que as relações sociais são mediadas pelas coisas e,
por isso, os afazeres cotidianos seguem o movimento delas, sem transparecer que
as pessoas cumprem e executam conscientemente seus atos históricos, porém não
compreendem e assim formam “uma falsa consciência”.
O efeito causado pelas coisas na visão dos indivíduos que
analisam a realidade é que, política se faz com respostas aos problemas sociais.
Pensa-se de imediato em fazer a economia crescer, gerar empregos e movimentar o
mercado. As ideias ilustram essas intenções e se apegam ao conceito de “justiça
social” para dizer que os direitos devem ser garantidos. Quando entram os
conceitos abstratos, desaparece a classe social e a consciência daquela classe;
esses lugares são sempre preenchidos com “a consciência da ordem”.
Quando alcançamos a consciência da ordem ou do “estado de
direito”, essência da política burguesa, desde a Revolução Francesa, os lados
da divisão social se apresentam: o primeiro desejoso de impor a sua vontade,
ataca as leis e as instituições; o segundo agarra-se à “consciência da ordem”,
e se dedica a praticar a “política do anexo”; ou seja, esse lado também tem
suas vontades, mas elas são entregues aos seus representantes para realizá-la.
Portanto, esses lados estão “desclassificados” e “desconscientizados”. Podem inclusive
oscilarem e revezarem-se nos papeis que os lados assumem.
Vontade e consciência vistas aqui separadas uma da outra,
refletem o total esvaziamento da luta de classes em substituição ao apego e
aceitação do estado de direito governado temporariamente por indivíduos
aliados, geralmente falsos nas intenções e na consciência. O pragmatismo
político brasileiro, desde a abertura após a ditadura militar, no início da
década de 1980 e, repetido em outros países, foi levar para dentro da ordem quem
agia conscientemente contra ela e a qual precisava ser destruída. As forças
revolucionárias foram convencidas de que a política é feita dentro da
institucionalidade e, com isso, aprenderam a aliarem-se aos defensores do
capital e do Estado. Este movimento que arrastou e mantém como reféns as
organizações populares, que reivindicam dos governos, medidas aliviadoras dos
problemas, abriu espaço para as forças da extrema-direita de se posicionar mais
pela vontade do que pela consciência, contra a ordem favorecedora das forças de
esquerda, para controlá-la com outras mediações.
Extintos os partidos revolucionários, o instrumento de
ação passou a ser os governos conformistas, pois, ao mesmo tempo em que se
conformam à ordem, conformam os aliados a aceitarem o mínimo, oferecido
assistencialmente, enquanto o capital se expande sobre as terras, florestas, minérios
etc. Desse modo a vontade de organizar um novo partido revolucionário,
desapareceu junto com a consciência revolucionária.
A veemência com que o Supremo Tribunal Federal atua, para
punir, parte dos implicados na tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023,
reflete o instinto repressivo e totalitário do capital, que criou e mantém em ação
o Estado capitalista para garantir o funcionamento da ordem a ele favorável.
Por isso, o entendimento de que o Estado pertence ao capital e não aos indivíduos
ou classes, é de fundamental importância, para entendermos a rigidez da
repressão exposta. Ou seja, não importa se por trás dos movimentos das forças “desordeiras”
estejam as concepções, comunistas, nazistas ou golpistas, importa o perigo que elas
representam para a acumulação e expansão do capital.
As punições políticas e jurídicas para os capitalistas
são irrisórias. A prática do abandono de seus representantes é corriqueira.
Quando necessitarem de novos representantes golpistas ou mobilizadores e
destruidores, os encontrarão com facilidade. Importa para eles que a exploração
seja mantida. Para as forças de esquerda e populares é um enorme fracasso
apenas aguardar que o judiciário puna os envolvidos na tentativa de golpe, sem
nenhuma preparação para enfrentar o retorno dos ataques comandados pela vontade
oposta.
Em síntese, não há como fazer política contra a ordem sem
classe e sem consciência de classe, no máximo, nesse jogo, se constituirá uma
torcida favorável aos governantes para que façam alguma melhoria e se reelejam.
Para constituir a classe e formar a consciência é obrigatório despertar a
vontade e pensar em ter uma organização de classe ou mais propriamente um
partido da classe.
Ademar Bogo