Vivemos em uma sociedade em permanente conflito entre a obrigatoriedade e o desrespeito. Se a primeira nos coage o segundo nos tenta a agirmos inversamente. Há, no entanto, pelo menos duas linhas de obrigações coercitivas: as que constam em leis e, as recomendações das normas morais.
Freud ao tratar da civilização percebeu que há pessoas defensoras
da mesma e outras que a hostilizam porque precisam renunciar aos próprios
instintos em respeito às proibições postas. O raciocínio do autor de “O futuro
de uma ilusão” sugere a imaginar que, se cada indivíduo pudesse tomar a mulher
que quisesse como objeto sexual; matar sem hesitação o rival ou qualquer pessoa
que se colocasse no caminho que leva à pessoa amada, e se, também se pudesse
tomar qualquer dos pertences de outro sem pedir licença, que sucessão de
satisfações seria a vida!
Por outro lado, se
assim ocorre-se de imediato perceberíamos que todas as pessoas com as quais
convivemos teriam os mesmos desejos e poderiam fazer conosco o mesmo feito por
nós e, viver seria algo muito perigoso como já foi no passado quando a
humanidade ainda vivia no “estado de natureza” e lá imperava a “guerra de todos
contra todos”, conforme descreveu Thomas Hobbes.
O filósofo Aristóteles não ignorou o tema da
obrigatoriedade, mas a sua argumentação se ateve à classe dos “atos justos”;
eles sempre estão em consonância com alguma virtude e também prescritos pelas
leis. Aqui nos deparamos com mais uma restrição aos instintos, isto porque, não
basta seguir a prescrição da lei, mas considerar que, se ela “não permite
expressamente, ela proíbe”.
Aristóteles ilustra a sua explicação com o suicídio.
Poderíamos cada um de nós pensarmos dessa forma: ‘a lei pode me proibir de
matar o meu semelhante, mas não pode proibir que eu mate a mim mesmo.’ A
resposta já foi dada acima: se a lei não autoriza, mesmo sem expressar por
escrito, ela proíbe. O raciocínio é bastante simples: se alguém viola a lei,
causa voluntariamente um crime, porque ele conhece tanto a pessoa quanto o
instrumento usado para causar o dano a outrem e por isso age injustamente.O
mesmo princípio da voluntariedade é usado para avaliar um indivíduo que conhece
a si mesmo, mas se apunhala atentando contra a própria vida. Como a lei não
permite a prática desse ato, o sujeito age injustamente.
Poderíamos argumentar: ‘mas o indivíduo é livre e pode
fazer de sua vida o que bem quiser.’ Se assim argumentássemos estaríamos
deixando de lado o principal elemento da análise. Qualquer indivíduo faz parte
de uma coletividade e, mesmo querendo retirar-se dela, apunhalando-se, não age
apenas contra si, mas também contra a sua comunidade. Quando isso ocorria na
sociedade ateniense, sem a aprovação da lei e o consentimento da comunidade, o
suicida deveria ser punido com a perda dos direitos civis. Esse princípio foi
trazido para os códigos contemporâneos, conforme vemos no art. 12 do Código
Civil brasileiro, quando diz que o morto poderá sofrer violação aos direitos à
sua personalidade: “à honra, “à privacidade, à imagem”.
Já temos o suficiente para relacionar a rejeição à vacina
contra a obrigatoriedade de tomá-la. O desrespeito às medidas de segurança que
levam o indivíduo a se expor e a contrair a Covid-19, significa, no primeiro
aspecto, à prática de atos injustos pela contrariedade das orientações emitidas
pelas autoridades da saúde. Conhecendo a si e ao vírus, o indivíduo também
atenta contra si, como se fizesse uso de um punhal para tirar a própria vida;
considerando que o indivíduo é membro de uma coletividade e convive com ela,
comete outros atos injustos: atenta contra a coletividade, podendo repassar o
vírus ou vir a ocupar um leito no hospital que poderia ser utilizado por outro
paciente vitimado por outra doença e, eleva os gastos com o atendimento no
sistema de saúde com uma enfermidade que poderia ter sido evitada.
O negacionismo em relação à pandemia do coronavírus e a
rejeição pela vacina, expressam o grau de ignorância existente na civilização
capitalista e, representam, junto com outras, tentativas para destruí-la. Os
atentados partem de cidadãos comuns como também de autoridades governamentais.
Agem movidos pelos instintos e fazem a sociedade retroceder, não para o “estado
de natureza”, mas para a barbárie que também se guia pela violência e a “guerra
de todos contra todos”.
A perda dos direitos civis do suicida defendida por Aristóteles,
combinada com a “perda dos direitos do morto”, constante do Código Civil
brasileiro, devem ser consideradas para alertar os vivos, que os direitos
individuais do cidadão não garantem a liberdade de atentar contra a vida alheia
e, se a lei não obriga a todos a tomar a vacina, ela também não permite
expressamente a não tomá-la, logo, ela proíbe de não tomar, portanto, todos os
cidadãos que vivem em sociedade são obrigados a tomá-la.
Qualquer suicida, seja por qualquer motivo, atenta contra
a sociedade. Primeiro, ele é parte desse coletivo que o incluiu quando nasceu,
logo, ao se retirar, por um ato egoísta, comete uma injustiça. Por outro lado,
considerando o número de habitantes, a sociedade e o Estado investiram em infra-estrutura
e em políticas públicas, no caso da saúde no Sistema Único de Saúde para
atender a todos. Nesse sentido, o negacionista ao negar a realidade para esconder
a verdade, comete dois crimes: o primeiro de suicídio por atentar contra a
própria vida e, o segundo, por vir contrair a doença, é também um homicida, por
contaminar propositalmente mais de uma centena de pessoas e muitas delas
evoluem para óbito.
A civilização guiada pela ciência e orientada pelas leis
constitucionais, juntamente com as normas morais, por mais que as contradições
agravem os conflitos e destruam os laços fraternais na convivência social,
precisa se impor sobre as reações negacionistas e destrutivas, empregando
medidas que restrinjam as vontades e controlem os instintos dos suicidas e dos
homicidas, impingindo a eles, ainda vivos, as medidas da violação dos direitos
do morto inerentes à sua personalidade – direito à honra, à privacidade, à
imagem e, podemos acrescentar à liberdade de fequentar lugares aonde circulam
pessoas; ao direito de serem atendidos gratuitamente no SUS caso contraiam o
vírus e precisem de atendimento após o termino da vacinação; o direito a tirarem
passaporte para evitar que circulem em comunidades formadas por outras culturas
não negacionistas; o direito de matricularem-se em escolas e universidades para
assistirem aulas presenciais; mas, principalmente, impedir que governem o país
pois, como se movem por instintos e não por consciência; os princípios éticos
são ignorados e tudo o que aponta para o
bem-comum é desconsiderado.
O divisionismo negacionista buscou no vácuo do
enfraquecimento da luta de classes, misturar os sujeitos para obscurecer as
contradições econômicas, sociais e políticas e, como isso a minoria dominante
adestra parcelas das massas populares e as põem a seu favor.
O caminho é a recolocação no cenário mundial do objetivo
da superação do capitalismo somente alcançado se na utopia do horizonte também
for colocada para ser construída a transição para o socialismo, caso contrário,
as disputas pontuais servem apenas para que os capitalistas ganhem tempo e
rebaixem ainda mais os níveis de entendimento, do bom senso e da combatividade
dos trabalhadores. Só a luta salva os bons avanços civilizatórios.
Ademar
Bogo
Autor do livro:
Organização política e política de quadros.