O tempo presente está sendo marcado
pela incoerência do capital produtivo contra si e contra todos, principalmente
quando relega à própria sorte cerca de quatro bilhões de seres humanos no mundo,
por não querer mais explorá-los no trabalho e, cruelmente, fazê-los aceitar a
situação pelo sentido interesseiro que dá à própria História.
Em tudo vemos a necessidade de explicação e,
por isso, agimos como faziam os primeiros filósofos que formulavam perguntas
tão simples que chegavam a repetir as dúvidas das crianças: de onde vem o
vento? Por que as pedras não se reproduzem? Do que são feitas as ideias?
Embora vivamos em tempos mais
complexos e envoltos pelo manto das informações silenciosas, nos interrogamos:
por que apesar de tanta tecnologia há fome e miséria no mundo? Por que há
desemprego e as economias não crescem para voltar a ter mercado para a força de
trabalho? Por que os governantes falam em reformas e nada melhora? Ao invés de
abrirem novas universidades cortam as verbas daquelas já existentes? E, em nome
da segurança, liberam o acesso as armas de fogo?
Como os antigos gregos, buscamos
respostas na Filosofia. Ela nos mostra, para dar um exemplo, como fez o francês
Michel Foucault, ao dizer que existe uma “genealogia da história” e se o
“genealogista” ao estudá-la tivesse o cuidado de ouvir e não só de falar, perceberia
que por detrás das coisas estudadas existe algo completamente diferente do que
é. Esse algo possui uma essência construída a partir de figuras que antes de
serem feitas eram totalmente estranhas, imaginações que vieram a ser o que não
deveriam ser.
Não é difícil entender esse
raciocínio se tomarmos como exemplo a nossa própria experiência, quando
dizemos: “se eu tivesse feito aquilo, hoje seria diferente”. Logo, a nossa
História pessoal foi feita sobre figurações opostas ao que queríamos que fosse.
Assim é a História do país; somente sabemos o que é e poderia ter sido, quando
escutamos a História. Eis então o dilema: a História passada não pode ser
mudada e a que virá, será feita guiada pelas imaginações estranhas que temos, e
farão acontecer algo diferente do que deveria ser.
O filósofo Nietzsche nos explica que
a “genealogia da moral”, tem uma História que se diferencia das outras
histórias, mas todas elas dizem o que não são. Por isso, a causa da gênese de
cada coisa, utilidade e inserção em um sistema é diferente daquilo que vemos e
existe. Isso ainda é pouco, pior é a crueldade do “princípio genealógico”
quando se manifesta para nos mostrar que a História da civilização nada mais é
que um processo de domesticação do animal humano. Por isso é que, barbárie e
civilização; violência e ordem; progresso e devastação etc., não se opõem, ao
contrário, se complementam. É assim que chegamos a determinados resultados
históricos não imaginados.
Nietzsche cultivou a visão de que a
crueldade perpassa toda a História. Não significa que ela acontece sempre da mesma
forma. O tempo faz com que ela passe por “refinamentos”. Significa que, se no
passado remoto ela se apresentou como brutalidade e ignorância, no presente ela
pode ser mais branda e manifestar-se também na forma de “violência espiritual”.
É
certo que a humanidade jamais funcionou sem o cheiro de sangue e tortura. Mas o
grau de refinamento da crueldade acontece pelo envolvimento da “espiritualização”
que tende para a sublimação do sofrimento. Nesse sentido, a “docilização”
humana e a aceitação de uma causa moral ou política imposta, tem grande
possibilidade de ser alcançada por meio da religião. Sentencia Nietzsche que os
homens das épocas de corrupção são espirituosos e caluniadores, eles sabem que
tudo o que é bem dito é acreditado. Podemos acrescentar, tanto nas redes
sociais, quanto no púlpito das igrejas.
O que tudo isso tem a ver com o
tempo presente? É que sem entendermos a crueldade que está por trás dos fatos
históricos, não conseguiremos entender o comportamento político e religioso dos
indivíduos e nem mesmo o porque acontecem determinados fenômenos políticos.
É no processo histórico que se tenta
domesticar o animal humano para que ele caiba dentro da “jaula” sociedade,
imaginada pelas elites dominantes que, para realizarem tais feitos usam como
instrumentos de crueldade, o retorno do cheiro de sangue e da tortura pelo
assalto aos direitos sociais; as mentiras espiritualizadas por meio das
pregações de certas religiões; as mentiras virtuais compartilhadas e a culpa
individualizada eximindo o sistema.
Dessa forma, o desempregado, em nome
dos “tempos difíceis”, aceita a sua cruz; o jovem compreende que a sua vez
ainda não chegou e, o eleitor e a eleitora alienados acreditam que na próxima
eleição acertarão votando no melhor. E assim todos esperam mansamente sem
perceberem que a crueldade, para exigir mais sacrifícios, vai sendo refinada a
cada instante.
O que nos cobra o tempo presente não
é apenas uma intervenção na História atual, mas descobrir qual é o sentido
consciente que queremos dar à História a ser feita, tomando como referência o
grau de crueldade a ser superado, começando pelo ataque a todas as formas de
alienação.
Ademar Bogo