O acaso é avaliado no senso comum como “sorte” ou
milagre. Na filosofia materialista ele tem um significado bem diferenciado e,
aplicado o mesmo conceito à política, chega-se ao entendimento de vê-lo como
necessário, para que, convertido em impulso, abra novas perspectivas para
frente. Karl Marx desvendou a importância desse elemento, ao escrever sobre a
Comuna de Paris de 1871, dizendo que a história seria fácil de ser levada
adiante se as lutas fossem sempre vitoriosas, porém: “(...) a história passaria
a ter um caráter muito místico se os ‘acasos’ não desempenhassem nenhum papel”.[1]
O acaso não deixa de ser algo inesperado que se forma e
atua como força dinamizadora nos conflitos modificando totalmente a correlação
de forças. No entanto, é preciso estar atentos porque eles são instantâneos e,
ao mesmo tempo que podem contribuírem para que surjam os avanços, agregando
novas vitórias, também podem empurrar e impingir ao movimento profundas
derrotas.
Se o acaso não pode ser previsto, ele deve ser esperado. Por
esta razão é que a força dirigente de qualquer processo político, reformista ou
revolucionário precisa ter um alto nível de consciência e preparo teórico para
não deixar passar certos momentos decisivos. O exemplo ilustrativo que
costumeiramente que usamos para discutir esse tema é o da Revolução
nicaraguense em 1979.
Desde 1920, quando o camponês Augusto César Sandino decidiu
formar um grupo armado para liderar a resistência contra as forças militares do
imperialismo norte-americano, que ocupavam o país, vindo a expulsá-las em 1933.
Logo após o acordo de paz, Sandino foi assassinado e instalou-se no país uma
ditadura militar, liderada por Anastásio Somoza durante quase quarenta anos.
Para enfrentar o regime totalitário, em 1961, alguns jovens combatentes como,
Tomás Borges, Carlos Fonseca e Carlos Mayorga, fundaram a Frente Sandinista de
Libertação Nacional (FSLN), com a tática inicial de organizar a população em
sindicatos, associações e desenvolver tarefas de alfabetização organização de núcleos para discutir o projeto
de libertação socialista.
Em meio à repressão intensa, a Frente Sandinista, atuou
por 17 anos desenvolvendo atividades educativas e combates armados, sem
conseguir desestabilizar o governo, até que, em 10 de janeiro de 1978, um fato
simbólico ocorreu e a população mobilizou-se dando início à insurreição. O
assassinato pelas tropas de Somoza do jornalista combativo, Pedro Joaquín
Chamorro, serviu de impulso para desiquilibrar a correlação de forças que até favorecia
a ditadura. Com o apoio da população a FSLN conduziu os enfrentamentos, até que,
em 19 de julho de 1979 a revolução foi vitoriosa.
O acaso, portanto, não faz o acontecimento todo, senão
que, ele é um acontecimento dentro do processo maior. A morte do jornalista foi
tomada pela população, como um grave atentado contra a os direitos humanos e
motivou as massas a irem à luta.
Ao
observarmos aquele processo e outros tantos, os momentos decisivos é que levam o
movimento revolucionário ganhar força. Mas, o detalhe principal não está na
formação do acaso, e sim na capacidade para tomá-lo como impulso motivador das
mobilizações. Quando ocorre um fenômeno político e a população em geral se
comove, mas não se mobiliza contra os culpados, significa que não há organização
nem liderança política preparada para convocar a população a ir para o
enfrentamento. Isso pode ocorrer com uma invasão de um país, um atentado contra
a vida de um candidato à presidência de república uma contaminação de um rio
etc.
Quando
a classe dominante pensa a política, seu objetivo é garantir a continuidade da
dominação, por isso, enfrentam militarmente as mobilizações, as greves,
ocupações de terra etc., com a determinação de restabelecerem a ordem que
favorece os seus interesses. Quando os trabalhadores pensam a política, deveria
ocorrer o mesmo e objetivar alcançar a libertação, provocando a desordem daquela
ordem, para organizar uma nova ordem.
Esse
indicador alerta para cuidar do reconhecimento das crises estruturais e entender
que o projeto de dominação nunca aceitará a libertação das massas populares. Logo,
é preciso confrontar a ordem capitalista com a ordem socialista. Eles querem
isso, nós queremos aquilo e, ambos os lados se preparam para garantirem os seus
objetivos.
Pela
teoria da organização política, sabemos que os processos pré-revolucionários
são longos, difíceis, confusos e cheios de frustrações. No entanto, quem assim
entende, mesmo no descenso, não deixa de pensar na revolução. Metaforicamente
comparamos a alguém que, ao cair em um
fosso profundo, salva-se porque fica enroscado à meia altura, mas, ao tentar subir,
desce ainda mais, chegando ao fundo. Naquela situação todas as suas forças se
concentram em encontrar um jeito de sair daquele lugar e chegar ao alto. Nessas
tentativas podem ocorrer os acasos, alguém passar ali e vê-lo, ou ele mesmo
encontrar algum objeto que lhe sirva de apoio para escalar aquela altura,
subindo palmo a palmo pelas paredes.
O
acaso está intimamente ligado com o querer. Como disse o filósofo Lúcio Aneu Sêneca,
preso em Roma no ano 65 pelo imperador Nero e morto na prisão: “Nenhum vento sopra a favor de quem não
sabe para onde vai”. As crises do capitalismo por si mesmas não levam os
trabalhadores para o socialismo. É preciso desejar profundamente superar o capitalismo
e lutar para que isto aconteça. Não importa quanto tempo o barco ficará girando
enquanto o vento não soprar na direção para a qual queremos ir, importa é estarmos
prontos, organizados e atentos, para quando ele surgir, rumarmos para o destino
desejado.
Com esse entendimento, tudo se simplifica. Revolta,
revolver, revolução, revolucionário, são palavras que possuem a mesma raiz. Se
apenas queremos o imediato, vivemos e morremos por essas realizações. Se nunca
pensamos em insurreição, nunca haverá uma oportunidade favorável que nos conduza
a ela. Portanto, para ser revolucionário, não precisa deixar de comer, morar, se
mover, procriar e nem lutar por isso; mas essas reivindicações, em certo grau,
pertencem também aos animais, ou seja, são direitos de qualquer ser vivo. Para
os humanos a revolução é um direito social. Lutar para realizá-la é um direito
que precisa ser colocado junto aos outros. Assim entenderemos que, se não podemos
ficar um dia sem comer, também não podemos ficar nenhum dia sem lutarmos e
organizarmos as forças para a insurreição revolucionária. Se queremos e
desejamos com vigor, dezenas de pequenos acasos, plasmados pelas injustiças
sociais, ocorrem todos os dias; basta tomá-los como pontos de revolta que a
revolução se põe em movimento.
A rebeldia é como a respiração. Se respiramos
mantemos o corpo vivo, se nos rebelamos mantemos o processo revolucionário
vivo. O oxigênio para o corpo está no espaço como no espaço estão os acasos
cotidianos para as revoltas. Basta fazer com naturalidade que o extraordinário
acontece.
Ademar
Bogo
[1] MARX, Karl. Cartas
a Kugelmann. In
Marx/Engels. Obras escolhidas. T. 3. São Paulo: Alfa ômega, s/d,p. 264.