Embora no interior do conceito de “democracia” a ideia
estampe um desejo comum, na realidade, interesses e direitos obrigam-nos a
dizer que vemos o mesmo conteúdo de modo diferente, isto porque, ela nunca foi
o “governo do povo”. Aristóteles já alertava no seu tempo sobre os três tipos
de governos possíveis, compostos nas três formas: Monarquia (governo de um só);
Aristocracia (governo de um grupo) e, Democracia (governo de muitos, mas que na
prática tornar-se-ia o governo de um grupo).“Distinguimos, em nosso estudo das
constituições, três constituições puras: a realeza, a aristocracia, a
república, e três outras que são um desvio: a tirania para a realeza. A
oligarquia em relação à aristocracia e a democracia quanto à república”.[1] No entanto, para o filósofo
a democracia, apesar de tudo era a forma menos pior.
Na contemporaneidade somos constantemente abalados com o
terror de que “a democracia está ameaçada”. Não deveria ser assim, porque, se
ela “emana do povo”, o governo da maioria, em circunstância alguma, poderia ser
abalado, isto porque, pela simples força em ação, a maioria sufocaria a minoria
inimiga. Acontece que a maioria democrática em nosso tempo, aprendeu a lutar
pelo poder com a simples presença nas urnas para depositar o voto a favor de um
representante capaz de propor e garantir os direitos fundamentais. No entanto, de
seu lado, a minoria articula-se enquanto elite, convoca as forças armadas para defendê-la
e utiliza os meios de comunicação para convencer os pobres a ajuda-los a
defender os interesses burgueses.
Já analisamos esta tese de Karl Marx, mas nunca é demais
recolocá-la: “No mercado de mercadorias
apenas se confrontam os possuidores de mercadorias, e o poder que exercem uns
sobre os outros é somente o que deriva de suas mercadorias”[2].
Isto nos remete de imediato a sabermos, se o poder que disputamos nos processos
eleitorais está de fato situado na política ou, pelo contrário, encontra-se
materializado principalmente na estrutura econômica da sociedade? Dada a resposta
saberemos se o poder “emana” das pessoas ou das mercadorias ou outras formas de
riqueza.
Quando desprezamos o poder da riqueza, personificada nos “ricos”,
seja ela na forma de mercadoria, dinheiro ou capital, ao partimos para as
disputas políticas com eles, procuramos convencer-nos de que teremos, dentro da
ordem, as melhores propostas e possibilidades para superarmos as diversas
crises. Se assim pensamos, desconhecemos que não foram os trabalhadores que
criaram as crises e, sendo elas estruturais, por maiores sucessos que tivermos,
elas retornarão e corroerão a nossa credibilidade, invertendo-a, pelo voto ou
pela força de golpes de Estado, para colocá-la abaixo dos cinquenta por cento e
apagarem os pequenos avanços conquistados no campo dos direitos.
Desde a Antiga Grécia a república e a democracia são as
melhores referências políticas civilizatórias; foram elas inclusive confirmadas
pela Revolução Francesa de 1789. De lá para cá os parâmetros para organizar e
gerir o Estado capitalista quase sempre teve as eleições como sinônimo de vigor
dos processos democráticos. Tanto é verdade que se confirma se um governo é
democrático, se ele passou, foi aprovado e respeito o processo eleitoral.
No entanto, apesar desses anseios e demonstrações da
vontade soberana, as democracias não conseguiram, de forma permanente,
sustentar e proteger a vontade da maioria nem quando estiveram em vigor e, pior
ainda, quando as intervenções tirânicas, na forma de golpes interferiram para
garantirem os interesses da minoria. Exemplo disso podemos confirmar observando
a história da República brasileira. Grosso modo, em 135 anos, tivemos, pelo
menos, dez golpes de Estado, representando, em média, um a cada treze anos e
meio.
Diante disso, é importante perguntar: se a democracia é o
melhor regime, defendido e legitimado pela maioria dos cidadãos de um país, por
que, de tempos em tempos acontecem as violentas recaídas para o totalitarismo
e, mais ainda, por que a maioria da mesma população não defende esse bom regime
como princípio fundamental da civilização de um povo?
As respostas podem ir em diversas direções, aqui vamos
sintetizá-las em quatro fatores fundamentais:
O primeiro diz respeito à supremacia do poder da riqueza, o qual
caracteriza a naturalidade da sociedade desigual, devendo ela, ordeiramente,
funcionar e garantir à minoria a supremacia dos seus interesses sobre a maioria.
O segundo fator está ligado à natureza perversa da civilização, que não
consegue seguir em frente sem lançar mão da violência. Esta pode estruturar-se
por meio da articulação das forças internas de um país ou pela interferência
direta do imperialismo. E, em terceiro lugar, a fragilidade na forma de estruturar
a democracia representativa. Por natureza ela desautoriza a participação
permanente da maioria que a afirmou pelo voto, dando condições para que os
políticos eleitos formem grupos oligárquicos, capazes de elaborarem leis e
efetuarem reformas que chegam ir contra os direitos da maioria da população.
Diante dessa desmobilização, a maioria anterior torna-se minoria posterior. O
quarto fato diz respeito a unidade entre a riqueza e o seu possuidor. Não é possível
alcançar a mais simples justiça social sem desencarnar o capital do capitalista
e, por essa razão nunca se poderá dizer que este último seja um democrata aliado
dos trabalhadores.
No capitalismo, a democracia, mesmo na forma
representativa se mantém, enquanto garante os interesses da classe dominante. As
aristocracias formam-se no interior dos governos trocando apoio por ministérios
e, no parlamento por meio de “bancadas identitárias” seguindo sempre os
interesses e privilégios de grupos minoritários articulados pelo grande
capital.
Por mais que acreditemos na democracia, sem organização suficiente
defendê-la contra o imperialismo, a classe dominante com seus grupos oligarcas
e totalitários, a sensação será sempre, que a casa reconstruída na várzea pode
a qualquer momento ser levada pela enchente e arrastar para longe os esforços ali
empreendidos. Sabendo disso, deveríamos então desistir de lutar por melhorias,
sendo que tudo poderá ser arrasado na década seguinte? Não, ao contrário, a
maioria que se esforça por estabelecer a ordem democrática deve também empenhar-se
na sua preservação. Para que isto ocorra, é preciso organizar-se para uma vez
constituída a maioria, jamais deixar de sê-la. No entanto, para que isso ocorra
é preciso, com essa força, empenhar-se todos os dias, para tomar das mãos da
classe dominante as mediações que permitem a ela voltar para implantar o
totalitarismo.
Ademar
Bogo
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