Karl Marx, na “Introdução à critica
do direito de Hegel”, trouxe presente, em 1843, um problema existente na
Alemanha, formulado em torno da crítica à religião, considerada o “pressuposto”
de toda critica. No entanto, para o filósofo, a vida não é só religião e, por
isso, a sua afirmação desafiadora veio no seguinte sentido: “o homem não é um
ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a
sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência
invertida do mundo, porque eles são o mundo invertido”.
Bem entendido, não é a religião que
cria “o mundo invertido”, mas a força dos proprietários que constituem a
sociedade civil e o Estado. Por sua vez, a religião, sendo a crença deste mundo
invertido, ela se afirma como a fantasia da consciência individual, sem a qual
a vida seria insuportável.
São as diversas fantasias
falseadoras do mundo real que, além de afirmarem alguns dogmas deformadores da
ciência, da filosofia e da arte, sustentam as profissões de Fé repulsivas e
manipuladoras da linguagem, para que as mensagens caibam dentro do quadrado
ideológico estabelecido.
No concreto, pela evidência dialética,
não podemos ter o real e não o seu contrário. Se temos a “boa religião”, com
certeza teremos também a “má religião”; ou como espreitou o próprio Marx,
quando presenciou o dizer de que havia a “Filosofia da miséria”, concluiu que
haveria ter também a “Miséria da filosofia” e por isso escreveu, em 1847, um
livro com este nome. Nesse sentido, por que a miséria religiosa não poderia ser
vista, como sendo, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto
contra a miséria real? Mas a religião fantasiada, “... é o suspiro da criatura
oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de
coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo”.
Reduzir a religião como “ópio do
povo”, tornou-se, ao longo da História, a tese nua e crua nas fileiras da
direita; um dogma de negação dificilmente confrontado, principalmente quando se
tratou de disputar os interesses eleitoreiros. Isto ainda ocorre porque o
pressuposto da “miséria religiosa”, imposto pelo imperialismo com a criação das
seitas neopentecostais, por esperteza ou ingenuidade, foi deixado de lado ou
confundido como sendo ele o sintoma e não causa da miséria social e espiritual
dos diversos povos.
Evitar a critica política da relação
entre a miséria social e a miséria religiosa expandidas pelo mundo invertido do
capital e propagadas pelas seitas religiosas, é permitir que os espertalhões e
vendilhões de artefatos ideológicos, como, “tijolos da obra de Deus”; “toalha
milagrosa”, “fronha dos sonhos”; “martelo da justiça”; feijão que cura Covid-19”
etc., equivale a concordar que se reproduzam os preconceitos moralistas
homofóbicos; a violência machista contra a mulher; a negação à educação sexual
na infância; a resistência contra a descriminalização do aborto; a visão
retrograda sobre o formato da família e tantos outros atrasos e atentados
contra os direitos humanos.
Nesse sentido, devemos saudar como
positiva a “Consulta aos católicos” proposta pelo Papa Francisco, iniciada no
mês de outubro e que se estenderá até o ano de 2023. Simbolicamente será a
primeira vez após o Concílio de Trento (1545-1563), que a Igreja católica se
propõe a discutir as reformas necessárias, para levar luz aos seus próprios
porões, agora com a participação massiva de leigos e leigas, em busca de
resgatar a coerência moral e a dignidade humana dos primeiros cristãos.
O grande desafio do século XXI, como
fizera Nicolau Maquiavel (1512), é politizar a política. Isso evita que os
devotos do capital, “sem partido”, criem seitas religiões e transformem as massas
empobrecidas educadas em força auxiliar de impulsos alucinados. Na medida em
que entendemos ser o capitalismo o próprio mundo invertido, dizer que a miséria
religiosa transforma a religião em “ópio do povo” é o mesmo que afirmar ser a
exploração da força de trabalho, o pilar central da alienação. Portanto, dizer
que a mais-valia é extraída de trabalhadores alienados e que a legitimação
moral dessa exploração se dá por meio de cristãos sedados ou chapados, seria um
total desapreço para a civilização. No entanto, é esta mesma a mensagem a ser
dita se quisermos desinverter o mundo.
Na medida em que “o mundo invertido”
é colocado de cabeça para cima, elimina-se o risco da asfixia cultural e a consciência
passa ser a referência de identificação e do ordenamento do novo estado de
coisas. Essa inversão não eliminará apenas a miséria econômica, mas também a
miséria política, religiosa e moral.
Ademar Bogo
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