O conceito de “construções em
análise” pertence a Freud, que o formulou em 1937, para dar crédito à
Psicanálise frente à visão depreciativa que os cientistas alimentavam sobre a
mesma.
A preocupação de Freud é estabelecer
o lugar e a função das duas partes que compõem a análise psicanalítica: o analista
e o analisando. Ou seja, é a harmonização do encontro das duas pessoas que
possuem duas tarefas distintas. Nesse caso, se à pessoa que está sendo
analisada cabe a tarefa de recordar algo que foi por ela experimentado ou
reprimido, ao analista resta completar aquilo que está esquecido, fornecendo
elementos que permitam edificar as construções analíticas.
Esse trabalho não ocorre
propriamente como uma escavação em que o arqueólogo realiza em uma ruína antiga
soterrada, isto porque, enquanto na ruína existem muitas coisas destruídas, na
análise pessoal as coisas estão vivas e latentes. Mas, tal qual faz o
arqueólogo que busca as colunas, as paredes e a ordem da estrutura da construção,
o analista busca as lembranças, as associações e o comportamento do sujeito da
análise.
Trazendo para a política, as
relações ficam um pouco mais complicadas, porque não se trata da investigação
de uma ruína soterrada que a pesquisa do arqueólogo visa reconstruí-la, e nem tampouco de um indivíduo em análise que
quer reconstruir, por meio das lembranças a sua própria história. Ou seja, na
política nos deparamos com coletividades, categorias, classes ou grandes
contingentes de massas, elas mesmas arruinadas, que dependem de iguais
habilidades dos arqueólogos e analistas para refazer as construções.
Há dois elementos culturais que
pesam muito quando se pensa em análise individual ou social, que são
denominados de “tradição” e de “figuração”. Se com a tradição vivenciamos o
passado, pela figuração vislumbramos o futuro, montamos cenários e planos.
Nesse sentido, um doente que está em tratamento ou um sujeito que está
desempregado, ou ainda, um conjunto de pessoas em luta, relacionam experiências
vividas enquanto desejam algo que virá.
Um detalhe importante é preciso ser
colocado, tanto a tradição, quanto a figuração, não fazem parte do patrimônio
exclusivo de uma só classe; ambos os elementos podem ser utilizados pelas
forças dominantes e pelas forças dominadas. Os objetivos, se quisermos voltar à
ilustração da ruína soterrada, depende de cada escavador. Um pode escavar com o
objetivo de trazer de volta o passado e garantir que os registros históricos
permaneçam para orgulhar e educar as futuras gerações; outro pode fazer o mesmo
trabalho, no intuito de destruir provas.
De outro modo ocorre com as análises
das tradições marcadas por fatos históricos recontados por duas partes com os
objetivos contraditórios. Se as gerações que nasceram próximas da segunda
metade do século passado, fizerem um pouco de esforço, irão recordar que, por
quase três décadas, frequentemente aparecia o nome de Nelson Mandela, condenado
à prisão perpétua na África do Sul. Em 1994, já livre, candidatou-se à
presidente da República e governou o país até 1999.
A luta de Nelson Mandela para as
forças de esquerda, sempre representou um exemplo de resistência, de combate ao
racismo e às injustiças sociais. Para as forças de direita ele sempre fora um
incômodo. Preso em 1962 pela ajuda decisiva do sistema de inteligência dos
Estados Unidos, não se rendeu e passou 28 anos de humilhação nos cárceres da
África do Sul.
Como todas as informações e
experiências históricas pouco recontadas vão se apagando da mente humana, de um
momento para outro, ao se assemelharem as situações, muitas lembranças vêm à
tona e podem incentivar ou desmotivar as reações.
Como também os interesses de classe
são opostos, um fato pode ser visto e relatado de duas maneiras diferentes. Se
as lembranças da luta e resistência do povo Sul africano contra o Apartheid,
aparecem pintadas com cores pálidas nas mentes das gerações mais velhas e, praticamente
nem entraram na mente das gerações mais novas, percebendo que, em diferentes partes do mundo
surgem muitas reações contra o racismo, as forças de direita aparecem e
recontam a vida atribulada de Nelson Mandela, sugerindo pela análise política que
“lutar é perder tempo”. Primeiro porque, insinuam os dominadores, que podemos
amargar longos períodos de prisão e, segundo, porque a luta de classes é inútil
diante da possibilidade de alcançarmos o objetivo figurado por meio da
institucionalidade disputando pelo voto a presidência da República como fizeram
os africanos do Sul ou como nós brasileiros com praticamente o mesmo tempo de
enfrentamentos para elegermos o presidente do Brasil.
Deveríamos levar em consideração o
que disse o filósofo Walter Benjamin, quando tratou sobre o conceito da
História que, “o passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à
redenção”. O índice misterioso é desvendado pela reabilitação das lembranças
quase apagadas do cotidiano, ecos de vozes que emudeceram ou exemplos que cobram
a reconstrução.
O sujeito da analise histórica é
sempre aquele que também se analisa. Os hábitos políticos cultivados a partir
de certas referências de tempo fizeram o inverso, o analista analisa o
analisando dando a ele as interpretações segundo as suas próprias noções de
transferência. Quando essas interpretações pendem para a radicalidade, enquanto
há evidências para a revolta, os esforços se coadunam e mantém viva a busca do
objetivo figurado; quando as interpretações pendem para a acomodação, o
reformismo e o censo de oportunismo levam à cooperação com os próprios dilemas
e tiram a possibilidade da redenção do passado.
Há em nosso passado histórico
soterrado, ruínas de partidos, de estratégias e de programas que indicavam
quais eram as intenções ingênuas. Do passado vêm-nos o eco de gritos de
protestos, vem-nos a imagem de gerações torturadas e mortas que insistem para
que as gerações do presente empenhem esforços para garantir a redenção.
Escavar essas ruínas por meio da
análise, para reconstruí-las teoricamente, é fundamental, para que os sujeitos
da História do presente possam decidir o que deve ser rejeitado e o que deve
ser ressignificado. Repetir aquilo que foi soterrado sem análise é reconstruir
as mesmas bases que levaram à ruína.
Temos como certo o que nos disse
Benjamin, “...o passado nos dirige uma apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado
impunemente”. São apelos das forças de direita e também de esquerda, mas
principalmente daqueles que sonharam com a superação do capitalismo. Nada pode
ser rejeitado ingenuamente e nem impunemente. O novo é o que se reconstrói
durante e depois da escavação. O que será o novo? Somente a análise e o esforço
da escavação nos dirão.
Ademar
Bogo
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