domingo, 15 de setembro de 2024

A VIOLÊNCIA DO FOGO


O fogo desde a pré-história, quando as crenças atribuíam a sua criação a uma divindade. Os gregos revelaram como as primeiras chamas chegaram até a terra com Prometeu. Por ordem de Zeus ele foi amarrado em uma rocha em companhia de um pássaro carnívoro, para comer-lhe diariamente o fígado pela travessura de ter se apiedado dos homens, dando-lhes o fogo de presente.

Posteriormente em Olímpia, cidade destruída na antiga Grécia, na qual se originaram os “Jogos olímpicos”, uma tocha foi acesa para simbolizar o vigor da juventude. Os cristãos adequaram uma simbologia para anunciar a vinda do salvador através da fogueira acesa na casa dos pais de João Batista. No seu oposto, mais adiante as mesmas fogueiras, na inquisição, serviram para queimar os hereges   

O general alemão Carl Von Clausewitz, no século XIX fez referência ao uso do fogo na guerra. Em seu livro “Da guerra”, de fundamental importância para quem deseja estudar os conceitos de tática e estratégia. Na elaboração não deixou de incluir a importância do fogo para a civilização. “A invenção da pólvora e o constante aperfeiçoamento das armas de fogo são por si sós suficientes para mostrar que o progresso da civilização nada fez de prático para alterar ou para desviar o impulso de destruir o inimigo, que é essencial à própria ideia de guerra.”[1] Ou seja, os saberes civilizatórios permaneceram no grau da brutalidade da destruição.

Em outra passagem o mesmo livro revela que o fogo poderia ser considerado uma arma. “As áreas cuidadosamente cultivadas são mais do que uma desvantagem para a artilharia, e as montanhas são piores ainda. Ambas proporcionam, evidentemente, uma proteção contra o seu fogo e não são, portanto, favoráveis a um exército cujo principal efeito seja o fogo.”[2] Nessa descrição podemos considerar a referência do “poder de fogo” da artilharia, mas também, perigo do próprio fogo como força de ataque.

Seja como for, é fácil de percebermos o perigo que representa o fogo indevidamente usado. O seu poder de destruição, a depender do vento, é mais veloz que os seus apagadores que, por segurança não podem atacá-lo de frente a frente. A técnica dos aceiros, tão comum desde a antiguidade, continua sendo a principal tática de combate em campo aberto. Eles como uma força de segurança preventiva, anula completamente a tendência à sua evolução em terrenos cobertas com matéria seca.

Por outro lado, o cuidado preventivo dos aceiros deveria ser, como qualquer outra arma que, por precaução se coloca longe do alcance das crianças, simplesmente porque elas não tem o discernimento nem conseguem avaliar a periculosidade da mesma. Evidentemente quando foge ao controle e ocorre um incêndio ou um ato de atentado contra a vida, são considerados acidentes e não crimes.

Embora tendo a sua utilidade para os agricultores para fazer a limpeza dos terrenos ou das pastagens, ele deve também ser considerado como uma arma de ataque contra a natureza. Nesse caso, um adulto que ateia fogo em período de estiagem, sabendo que as chamas podem alastrarem-se e tornarem-se incontroláveis; esse ato não pode ser considerado acidente, mas um crime contra a biodiversidade das espécies, humana, vegetal e animal.

O Brasil é um país de grandes extensões de florestas, inimigas dos grandes criadores de gado. Os territórios demarcados legalmente, impõem limites para devastação. Mas a lei tendencial da expansão do capital é igual em todas as situações; não importa se é na produção de um veículo de transporte, numa máquina ou num boi. Importa é materialidade da valorização do valor. Sendo assim, as matas tornaram-se alvos fáceis dos matadores.

O “Dia do fogo” criado em agosto de 2019, como protesto às leis ambientais, revela que as queimadas nada têm de ingenuidade, nem tampouco podem ser considerados acidentes os milhares de focos de incêndio espalhados pelo país. Com as proporções que essas ações tomaram, precisamos considerar que estamos enfrentando diferentes guerras cada uma com as suas devidas caracterizações: a primeira delas é de caráter militar, justamente porque o fogo nessas proporções, ser utilizado como uma arma de combate. Portanto, se as forças militares não tinham até o momento identificado um inimigo invasor e devastador do território nacional, já existe um e está solto pelos campos. Apagar os incêndios é uma tarefa de defesa do território e da soberania nacional.

Por outro lado há outro tipo de guerra de natureza “ecocivil”. Devemos pensar que existem leis reguladoras e de defesa do meio ambiente. Elas proíbem e preveem punições dos criminosos. Mas, se a leis não estão sendo respeitadas por uma facção social, há uma clara desobediência civil instalada contra, o que os juristas citam quando lhes é conveniente, é o “Estado de direito”. A ordem a ser respeitada não é apenas quando um grupo se lança contra as instituições políticas e jurídicas; os ecossistemas representam muito mais que instituições públicas ou privadas.

A ignorância tem sido posta como uma desculpa para amenizar os atos de barbárie. Mas, ignorar nunca sinônimo de violência, isto porque, devemos entende-la como desconhecimento. No entanto, quando o marido assassina a esposa não é por ignorância; quando o agronegócio usa os agrotóxicos e os governantes autorizam a usá-los, também não é. Da mesma forma que disparar uma arma contra alguém é violência, riscar um fósforo e segurá-lo aceso até ele queimar as primeiras folhas secas para daí dar início a um incêndio, é ainda mais violento, pois, além de ser consciente, o ato não ataca apenas uma pessoa mas milhares de espécies de vida.

Se estamos em guerra é preciso que as forças armadas assumam  o seu papel e enfrentem o fogo; as forças polícias prendam e punam os criminosos e, as autoridades governamentais desarmem os culpados confiscando suas terras. À sociedade civil cabe mobilizar-se contra a cultura do boi promovida por seus adoradores e recriadores dos mitos de que o “agro é tudo”.

As forças políticas que, escondidas atrás das fumaças das queimadas, gastam mais tempo em conquistar votos do que cuidar das pessoas que irão votar, cabe à responsabilização pela omissão de não atuarem preventivamente contra os verdadeiros invasores das terras públicas e dos povos nativos com o uso indiscriminado do fogo.

A civilização imbuída do uso da violência, há tempos vem mostrando sinais de decadência, porém, ao chegar ao alto grau de desrespeito de pôr a terra toda em chamas, levar à inalação insuportável de fumaça e, obrigar as espécies todas, banharem-se e beberem água da chuva tingida de fuligem, passou de todos os limites. Precisamos reagir.

                                                                                               Ademar Bogo



[1] CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 88

[2] Idem p. 406

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