domingo, 21 de julho de 2024

ACASO E CERTEZA

 

            O acaso é avaliado no senso comum como “sorte” ou milagre. Na filosofia materialista ele tem um significado bem diferenciado e, aplicado o mesmo conceito à política, chega-se ao entendimento de vê-lo como necessário, para que, convertido em impulso, abra novas perspectivas para frente. Karl Marx desvendou a importância desse elemento, ao escrever sobre a Comuna de Paris de 1871, dizendo que a história seria fácil de ser levada adiante se as lutas fossem sempre vitoriosas, porém: “(...) a história passaria a ter um caráter muito místico se os ‘acasos’ não desempenhassem nenhum papel”.[1]

            O acaso não deixa de ser algo inesperado que se forma e atua como força dinamizadora nos conflitos modificando totalmente a correlação de forças. No entanto, é preciso estar atentos porque eles são instantâneos e, ao mesmo tempo que podem contribuírem para que surjam os avanços, agregando novas vitórias, também podem empurrar e impingir ao movimento profundas derrotas.

            Se o acaso não pode ser previsto, ele deve ser esperado. Por esta razão é que a força dirigente de qualquer processo político, reformista ou revolucionário precisa ter um alto nível de consciência e preparo teórico para não deixar passar certos momentos decisivos. O exemplo ilustrativo que costumeiramente que usamos para discutir esse tema é o da Revolução nicaraguense em 1979.

            Desde 1920, quando o camponês Augusto César Sandino decidiu formar um grupo armado para liderar a resistência contra as forças militares do imperialismo norte-americano, que ocupavam o país, vindo a expulsá-las em 1933. Logo após o acordo de paz, Sandino foi assassinado e instalou-se no país uma ditadura militar, liderada por Anastásio Somoza durante quase quarenta anos. Para enfrentar o regime totalitário, em 1961, alguns jovens combatentes como, Tomás Borges, Carlos Fonseca e Carlos Mayorga, fundaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), com a tática inicial de organizar a população em sindicatos, associações e desenvolver tarefas de alfabetização  organização de núcleos para discutir o projeto de libertação socialista.

            Em meio à repressão intensa, a Frente Sandinista, atuou por 17 anos desenvolvendo atividades educativas e combates armados, sem conseguir desestabilizar o governo, até que, em 10 de janeiro de 1978, um fato simbólico ocorreu e a população mobilizou-se dando início à insurreição. O assassinato pelas tropas de Somoza do jornalista combativo, Pedro Joaquín Chamorro, serviu de impulso para desiquilibrar a correlação de forças que até favorecia a ditadura. Com o apoio da população a FSLN conduziu os enfrentamentos, até que, em 19 de julho de 1979 a revolução foi vitoriosa.

            O acaso, portanto, não faz o acontecimento todo, senão que, ele é um acontecimento dentro do processo maior. A morte do jornalista foi tomada pela população, como um grave atentado contra a os direitos humanos e motivou as massas a irem à luta.

Ao observarmos aquele processo e outros tantos, os momentos decisivos é que levam o movimento revolucionário ganhar força. Mas, o detalhe principal não está na formação do acaso, e sim na capacidade para tomá-lo como impulso motivador das mobilizações. Quando ocorre um fenômeno político e a população em geral se comove, mas não se mobiliza contra os culpados, significa que não há organização nem liderança política preparada para convocar a população a ir para o enfrentamento. Isso pode ocorrer com uma invasão de um país, um atentado contra a vida de um candidato à presidência de república uma contaminação de um rio etc.

Quando a classe dominante pensa a política, seu objetivo é garantir a continuidade da dominação, por isso, enfrentam militarmente as mobilizações, as greves, ocupações de terra etc., com a determinação de restabelecerem a ordem que favorece os seus interesses. Quando os trabalhadores pensam a política, deveria ocorrer o mesmo e objetivar alcançar a libertação, provocando a desordem daquela ordem, para organizar uma nova ordem.

Esse indicador alerta para cuidar do reconhecimento das crises estruturais e entender que o projeto de dominação nunca aceitará a libertação das massas populares. Logo, é preciso confrontar a ordem capitalista com a ordem socialista. Eles querem isso, nós queremos aquilo e, ambos os lados se preparam para garantirem os seus objetivos.

Pela teoria da organização política, sabemos que os processos pré-revolucionários são longos, difíceis, confusos e cheios de frustrações. No entanto, quem assim entende, mesmo no descenso, não deixa de pensar na revolução. Metaforicamente comparamos  a alguém que, ao cair em um fosso profundo, salva-se porque fica enroscado à meia altura, mas, ao tentar subir, desce ainda mais, chegando ao fundo. Naquela situação todas as suas forças se concentram em encontrar um jeito de sair daquele lugar e chegar ao alto. Nessas tentativas podem ocorrer os acasos, alguém passar ali e vê-lo, ou ele mesmo encontrar algum objeto que lhe sirva de apoio para escalar aquela altura, subindo palmo a palmo pelas paredes.

O acaso está intimamente ligado com o querer. Como disse o filósofo Lúcio Aneu Sêneca, preso em Roma no ano 65 pelo imperador Nero e morto na prisão: “Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde vai”. As crises do capitalismo por si mesmas não levam os trabalhadores para o socialismo. É preciso desejar profundamente superar o capitalismo e lutar para que isto aconteça. Não importa quanto tempo o barco ficará girando enquanto o vento não soprar na direção para a qual queremos ir, importa é estarmos prontos, organizados e atentos, para quando ele surgir, rumarmos para o destino desejado.

Com esse entendimento, tudo se simplifica. Revolta, revolver, revolução, revolucionário, são palavras que possuem a mesma raiz. Se apenas queremos o imediato, vivemos e morremos por essas realizações. Se nunca pensamos em insurreição, nunca haverá uma oportunidade favorável que nos conduza a ela. Portanto, para ser revolucionário, não precisa deixar de comer, morar, se mover, procriar e nem lutar por isso; mas essas reivindicações, em certo grau, pertencem também aos animais, ou seja, são direitos de qualquer ser vivo. Para os humanos a revolução é um direito social. Lutar para realizá-la é um direito que precisa ser colocado junto aos outros. Assim entenderemos que, se não podemos ficar um dia sem comer, também não podemos ficar nenhum dia sem lutarmos e organizarmos as forças para a insurreição revolucionária. Se queremos e desejamos com vigor, dezenas de pequenos acasos, plasmados pelas injustiças sociais, ocorrem todos os dias; basta tomá-los como pontos de revolta que a revolução se põe em movimento.

A rebeldia é como a respiração. Se respiramos mantemos o corpo vivo, se nos rebelamos mantemos o processo revolucionário vivo. O oxigênio para o corpo está no espaço como no espaço estão os acasos cotidianos para as revoltas. Basta fazer com naturalidade que o extraordinário acontece.

                                               Ademar Bogo



[1] MARX, Karl. Cartas a Kugelmann. In Marx/Engels. Obras escolhidas. T. 3. São Paulo: Alfa ômega, s/d,p. 264.

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