O filósofo Hegel ao escrever o seu livro, “Princípios da
Filosofia do Direito”, pretendeu dar à burguesia os fundamentos filosóficos
para constituir e gerir o Estado sob o imperativo das leis, e o faz primando
pelo sustentáculo da “liberdade”. Sua perspicácia foi tão grande que superou
todas as visões anteriores sobre o assunto. “O domínio do direito é o espírito
em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre,
de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o
sistema do direito é o império da liberdade realizada...” (§ 4).
Em primeiro lugar, se o
“domínio do direito” é o espírito geral, nada escapa sob o seu poderio. E, em
segundo lugar, se ele tem como ponto de partida a “vontade livre”, não apenas
tem a liberdade como substância, como também o próprio direito se institui como
a liberdade afirmada e realizada. Em síntese, aonde estão as leis, está a
liberdade.
De pronto percebemos
que as leis no modo de produção capitalista são elaboradas para garantir a
liberdade daqueles que querem ir e vir, produzir, transportar, comercializar e
consumir com garantias, de que ninguém impeça a “livre vontade” dessas
realizações. Tudo isso, posteriormente, veio a ser denominado “Estado Democrático
de Direito”. Ou seja, para que haja democracia é preciso que se faça presente a
“ditadura” das leis.
A conclusão decorrente
desta visão constitui o encravamento da liberdade na ordem da seguinte forma: se
não pode existir democracia sem leis, pois, sem elas valeria o poder totalitário
do indivíduo sobre a sociedade, também não pode existir capitalismo sem Estado.
O Direito positivo, ou seja,
depois de “postas as leis” tem-se a ordem constituída. O que não transparece
com facilidade nesta determinação, é que, por fora da ordem jurídica, há um
sistema estruturado, direcionado e canalizador do destino das leis para, por
dentro dele manter o seu funcionamento. Sem cair num mero funcionalismo, metaforicamente
as veias que irrigam o corpo da base econômica, é o Estado. É possível fazer intervenções
e inclusive transfusões de sangue, mas não é possível substituir o sistema
circulatório sem despedaçar o corpo inteiro.
Vivemos no Brasil, há
já a quase duas décadas, um profundo mal-estar entre o domínio econômico e o
domínio das leis. No entanto, a contradição principal não está na falta de
liberdade para os capitalistas realizarem os seus interesses; as leis cumprem a
função de manter o capital em circulação, tanto na esfera produtiva, quanto na
esfera especulativa. O que de fato há, é que marginalmente a esse funcionamento
ordenado, as diversas transformações tecnológicas, somadas às graves cosequências
impostas pelas leis tendencias do capital, cuja desarmonia entre produção, concentração,
centralização, expansão e especulação, funcionam como o cobertor reduzido para
cobrir os diversos corpos no frio do inverno de aprofundamento da barbárie.
Presenciamos no Brasil,
com cada vez mais veemência, o desconforto de setores médios e representantes
da especulação, com os espaços destinados ao abrigo das elites e de seus
colaboradores, ocupados por contingentes outrora desdenhados que passaram a
sofrer o rechaço político, culpabilizando o “espírito geral”, como nos disse
Hegel, acusando-o de estar garantindo, algum grau de liberdade às parcelas mais
pobres da população.
O conflito de interesses
colocado sobre o tabuleiro da conjuntura, tem por base a substância da
liberdade, com diferentes estratégias para usufruí-la. Pelo lado das forças da
extrema-direita o entendimento é de que “precisa ser eliminada” parte dos
poderes estais, principalmente os da esfera federal e, do lado das forças
progressistas, a luta para manter intactos, os poderes e o sistema jurídico,
como o fizeram as forças burguesas no passado e parte delas ainda o fazem no
presente. Se bem analisado, concluiremos que ao longo dos séculos fomos mudando
de lado e de funções entre as classes.
O que mudou então que
surpreendentemente, aquilo que sempre foi uma bandeira de luta dos
trabalhadores, de protestar, tomar e superar o Estado, parece ter sofrido uma
inversão e, todos os esforços passaram a serem destinados a defender os poderes
oficiais e a democracia capitalista?
Há três fatores, pelo
menos a serem estudados e colocados em discussão: o primeiro, trata-se da crise
do capitalismo que impede a realização de certas liberdades dentro da ordem
estabelecida; o segundo, nos mostra que houve, mais recentemente, o
enfraquecimento das forças políticas de esquerda e de direita e, o terceiro,
assinala que as forças armadas e policiais tornaram-se facções partidárias que,
além de associadas a outras facções criminosas, agem com grande autonomia na esfera
pública.
Do primeiro fator, já
falamos bastante em outros espaços, mas, o segundo e o terceiro podemos vinculá-los
e dizer que, se desrespeitoso foi o que um grupo minoritário, em menos de duas
horas de ação, tomou e destruiu os palácios dos três poderes na capital
federal, estarrecedor é observar as forças contrárias, totalmente
desmobilizadas, assistindo o presidente da República e um ministro do Supremo
Tribunal Federal, tentando garantir a ordem e a volta do respeito aos poderes
estabelecidos com o uso das leis.
Convençamo-nos que, se
ao invés de terem quebrado os palácios, os terroristas os tivessem ocupado e se
as forças armadas e policiais coniventes, entrado em greve e se negado a irem
despejá-los, o golpe de estado teria sido dado, e o presidente derrotado nas
urnas, poderia ter sido empossado como a autoridade única e soberana da
República.
Se por um lado,
constatamos que as forças da direita erraram na estratégia, de tentar minar a
ordem gradativamente, até que o país se tornasse ingovernável e, as forças
armadas se autoconvocassem para assumirem o poder; das forças de esquerda o que
sobrou das últimas décadas decadentes, foi apenas o aspecto físico; do ponto de
vista intelectual há sem dúvida nenhuma uma perda acentuada do conteúdo
revolucionário e da perspicácia em detectar as circunstâncias favoráveis para
uma ofensiva.
É certo que o golpe foi
frustrado e, apesar da ofensiva jurídica contra os seus executores estar sendo
exemplar, não significa que ele não venha a ser novamente tentado. Por outro
lado, abriu-se uma clareira para o desferimento de uma ofensiva, senão
revolucionária, pelo menos de afirmação democrática.
Para que saiamos das calúnias e entremos
definitivamente na política, a primeira medida a ser tomada, para estabelecer o
lugar de cada parte, é assumir-nos como socialistas e comunistas. Com essas
identificações muda tudo. O Estado passa a ser visto como um instrumento
transitório para implantar a verdadeira “democracia do proletariado”. Com ela
não se coloca apenas os inimigos na dos trabalhadores na cadeia, mas se
estabelece que a sociedade funcionará sob
nova ordem de funcionamento. As liberdades burguesas serão extintas e passarão
a vigorar as liberdades socialistas. Para tanto, a democracia precisa ser
instaurada em todas repartições, setores e instituições aonde reinam, a
propriedade privada dos meios de produção, a concentração do capital e os
privilégios, civis e militares.
Para que as autoridades tenham força de agir e
implantar as mudanças devidas, é importante que as massas sejam convocadas para
voltarem as ruas e, ao invés de girarmos em torno de um governo que quer
mostrar serviço para sanar o déficit das finanças, devemos impulsionar as
mudanças estruturais para implantarmos a nova ordem, aonde o capital sofrerá intervenção e controle, as
forças armadas terá o tamanho proporcional as necessidades e perigos eminentes,
os salários serão regulados sem abonos e regalias e a formação filosófica
entrará em todos os currículos.
Por outras frentes devemos investir na formação
política de todos os cidadãos. Controlar as redes sociais para que as mentiras
não vigorem como programa de ações e reformular o sistema partidário para que a
população em massa participe. Os programas de ensino civis e militares deverão
ser reavaliados e as concepções terroristas e antidemocráticas combatidas.
As tarefas podem ser múltiplas ou serem
totalmente ignoradas. Elas surgirão e se multiplicarão na medida que houver a conclamação das massas para darmos
um passo à frente no enfrentamento da luta de classes. Sendo o que temos no
momento, cabe às forças de esquerda organizadas, assumirem o comando.
Ademar
Bogo
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