Quando o filósofo Friedrich Engels esclareceu, em seu
livro, “A origem da família da propriedade e do Estado”, que o Estado nasceu dos
antagonismos ente as classes, justamente quando a sociedade chega a um
determinado grau de desenvolvimento e se enredou “numa irremediável contradição
com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis, que não
consegue conjurar”; estava revelando a natureza do Estado capitalista.
Havia no ano de 1884 quando o livro foi publicado, pelo
menos três visões destacadas sobe a natureza do Estado. A primeira visão foi
elaborada pelos filósofos antigos, com destaque para Aristóteles, cujo
entendimento era que o Estado surgiu naturalmente e, inclusive, funcionava
conforme as leis e as hierarquias do poder das demais espécies. Ou seja, os
homens, assim que passaram a viver em coletividades, copiaram da natureza o seu
sistema político.
A segunda visão foi
elaborada por Immanuel Kant, nascido em 1724 e falecido em 1804, na Alemanha. O
seu pensamento sobre o Estado evoluiu para além da natureza e instituiu-se pela
razão humana. Por esse entendimento, a razão tida como universal e, baseado
nisso, poder-se-ia ter uma ordem universal ditada pelo dever de que as vontades
se realizassem e, com isso, alcançar-se-ia também a paz universal.
A terceira visão elaborada por Georg W. F. Hegel,
filósofo alemão, nascido em 1770 e falecido em 1831, ateve-se à compreensão de
que o Estado é “a realidade da ideia moral”. Essa forma de ver, encantou mais a
burguesia. Além de considerar o Estado como o “reino da liberdade”, justamente
por ser ele “o espírito absoluto”, servia ele de instrumento concreto para centralizar
o poder e garantir a ordem para a “sociedade civil”. Essa sociedade era formada
unicamente pelos donos da riqueza e, principalmente no contexto dos ascensos
revolucionários na Europa, aquela classe dominante sentiu-se contemplada.
Engels, em 1884, um ano após a morte de Karl Marx, já
havia acumulado todo o entendimento da critica ao capitalismo e as demonstrações
históricas do movimento das contradições, davam a ele não apenas os fundamentos
filosóficos para identificar as contradições vigentes, como também para pensar a
própria superação do Estado.
Para Engels, esse poder “nascido da sociedade, mas posto
acima dela se distanciando cada vez mais...”, não pertence a ninguém e, de um
certo modo, isto é verdadeiro. Ele pertence à ordem estabelecida e cuida para
que esta ordem não seja desfeita pelos conflitos entre as classes. No entanto,
o próprio Engels afirma, “...o estado feudal foi o órgão de que se valeu a
nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno
Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o
trabalho assalariado.” (p.194).
Na medida que o “estado de direito” deve ser mantido e conduzido
pelo princípio de que a lei esteja “acima de todos”, presa-se primeiramente pela
ordem estabelecida. A ordem pode ser entendida como lei, mas não totalmente. A
ordem acima de tudo é o poder do “estado de coisas”, ou, dito de outra forma, é
como estão colocadas as coisas na sociedade.
Por “coisa”, podemos entender, a propriedade privada, o
capital, o dinheiro, o emprego, o salário, o mercado etc. Ou seja, na medida em
que essas coisas estão colocadas numa ordem de movimentação e funcionamento, entram
a lei e a força policial do Estado para assegurarem que assim permaneça. Com
isso se assegura que a sociedade desigual funcione.
Por isso, parece estranho ver algumas vezes um político,
um dono de Banco, comerciantes e outras pessoas tidas como participantes da
classe dominante serem presas. Essas ações do Estado não significam que ele
mudou a sua natureza e passou a ser favorável aos setores mais pobres da sociedade,
mas sim que ele interviu para evitar a desordem instalada por membros da classe
dominante. No entanto, nos demais setores em que o “estado de coisas”, como a
exploração da força de trabalho, o funcionamento do mercado; a manutenção das
taxas de juros; impostos pagos etc., tudo continua normalmente, mesmo que o
presidente da República viva a fazer passeatas com motocicletas ou se escondendo
silenciosamente por meses após a derrota eleitoral. O sistema funciona pelo
conjunto dos ordenamentos.
Fica mais nítida essa representação, se vincularmos com a
situação atual dos acampamentos em frente aos quarteis. Formados por
representantes de setores da classe dominante, exigem a intervenção militar,
por meio de um golpe de Estado. Contra esse movimento o poder judiciário age
rigorosamente, mesmo que os manifestantes sejam adeptos do presidente da República
prestes a deixar o governo ou estejam sustentados por empresários golpistas.
Mas entendamos que, essa reação do poder judiciário, não
é a favor da esquerda nem dos trabalhadores. É a favor da ordem. Se as forças
de esquerda e progressistas se beneficiam dela, é porque estão comprometidas em
manter a ordem das coisas como estão postas. Circunstancialmente é uma situação
ruim para as forças da extrema direita e boa para as forças de esquerda, porque
estas últimas voltam ao poder governamental e poderão, na margem permitida pela
ordem, direcionar as políticas públicas.
No entanto, a ordem do estado de direito permanece vigente
como sempre. Lembremos que no período do golpe de 2016 quando a presidente da
República foi cassada, as mesmas formas de luta, repetidas pelos “patriotas” de
hoje, a favor do golpe (menos essa de acampar em frente aos quarteis), em
grande medida foram utilizadas contra o golpe. E, por incrível que pareça, diante
da mesma Corte, ambos os movimentos foram derrotados: nem a presidenta Dilma
voltou em 2016, nem o presidente Lula será impedido de tomar posse em 2023.
Há, de qualquer modo, dois mistérios que assombram, e
ambos são oriundos da mesma matriz: o silêncio do presidente genocida,
fortíssimo e ovacionado por multidões há poucos meses, mas que deixa o governo
como se estivesse de acordo em ser julgado pelos crimes e ir para a cadeia e, o
silêncio das ruas, nas quais não se vê as forças contrárias, vitoriosas na
eleição para presidente, mas desmobilizadas, como estiveram nos mandatos anteriores
de Lula. Reeditaremos a crença de que, um presidente, um juiz ou a própria mídia
assegurarão os direitos?
De outro modo, ecoa nas paredes das melhores consciências
o sentenciamento de Engels, ao terminar
o livro declarou esperançosamente que: “As classes vão desaparecer, e de maneia
tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes,
desaparecerá inevitavelmente o Estado” (p.196).
Evidentemente que não podemos fazer tudo de uma só vez,
mas pelo menos podemos pensar. Será que, com a a reunião entre as classes ou
pelo menos setores delas, a ordem e o estado de direito capitalista serão
enfraquecidos? Que avanços podem ser construídos em um governo não genocida mas
a favor da ordem? É bom pensar porque as consequências são cruéis para ambos os
lados, quando a ordem é ameaçada. Castigado é o desordeiro ou alguém que a
ordem queira culpar. A exemplo do que retratou o poeta Geraldo Vandré em sua
música “Aroeira”: “Marinheiro, marinheiro/ Quero ver você no Mar/ Eu também sou
marinheiro/ Eu também sei governar/ Madeira de dar em doido/ Vai descer até
quebrar/ É a volta do cipó de aroeira/ No lombo de quem mandou dar”.
Por tudo dito, visto e revisto, quando os trabalhadores e
as massas empobrecidas estiverem adorando a ordem e o estado de coisas, é
porque já chegaram no socialismo ou se entregaram definitivamente ao
capitalismo.
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