No
conceito de retificação podemos encontrar diferentes ideias e significados.
Retificar, de modo geral, significa corrigir o que está errado. O filósofo
francês Gaston Bachelard (1884-1962) em seu livro, “A formação do espírito
científico” (1996) trata com profundidade a relação entre objetivo e subjetivo
quando, o primeiro tem a responsabilidade de corrigir o segundo. Disse Ele, “Uma descoberta objetiva é logo
uma retificação subjetiva. Se o objeto me instrui, ele me modifica”.
Temos
em nós “verdades aprendidas” socialmente que se tornam saberes superficiais formadores
do “senso comum” ou do entendimento mais rasteiro, misturando, superstições,
crenças, informações, alucinações, medos e, raramente, esclarecimentos.
As
diversas áreas do conhecimento científico são responsáveis para retificar em
nós os entendimentos equivocados, é quando a objetividade atua sobre a
subjetividade e, na intimidade humana, na qual guardamos as nossas compreensões
erradas ou insuficientes, ocorre uma ruptura. Para isso precisamos que o
consciente assuma a liderança sobre o ilusório para proceder à retificação das
ideias equivocadas. Há, portanto, que proceder por meio da ciência essa
“ruptura” com as ideias erradas e enfrentar todas as dificuldades decorrentes.
Todos nós sabemos da luta de Nicolau Copérnico (1473-1543) para defender o
sistema heliocêntrico mostrando que
era a terra que girava ao redor do Sol e não o contrário.
Na
Psicanálise esse fenômeno se dá pela força do consciente agindo sobre o
inconsciente, retificando neste, aquilo que ele registrou como trauma,
recalque, pulsões, luto etc. Enquanto isso não for alcançado, os transtornos do
inconsciente dirigem a vida do indivíduo transtornado.
Os
diversos transtornos e traumas criados pelas relações que estabelecemos com o
mundo objetivo criam efeitos e consequências em nossa subjetividade. Essas
relações podem ser, familiares, escolares, religiosas, culturais, políticas
etc. Nascemos e crescemos pressionados para adotarmos os comportamentos
indicados pela civilização. Quando agimos “errado” por acharmos certo, nos
condenam e nos fazem voltar a praticar o “certo” que conscientemente é
completamente errado.
Por
outro lado, os traumas têm origem em diferentes fontes e ocorrem a qualquer
tempo. Nos interessa, aqui, para voltarmos ao conceito de “retificação”, observarmos
a infância da nossa última fase política, tida como “democrática”, iniciada
após muita luta em 1985, quando foi debelada a ditadura militar no Brasil.
Na
década seguinte, ainda dentro do século passado, apesar das reações populares
aparentemente de revoltas conscientes, confrontamos os desejos por mudanças com
o medo da volta da ditadura. Os avisos para “tomar cuidado” eram constantes
que, falar em armas, mesmo em eventos fechados era motivo de retratação posterior
às instâncias partidárias, tiradas por menos, como se aquilo fosse apenas uma
expressão ocasional. Esse exemplo de agir “errado” contra a ordem, era o certo,
mas para aqueles que objetivavam governar o país por meio da via pacífica era o
totalmente errado.
Isso
nos mostra que a política também efetua terapias. Com o passar dos anos, as
constantes mobilizações empurraram o medo consciente para o inconsciente coletivo
e, com as repetições constantes de, “Sem medo de ser feliz” e “A esperança
venceu o medo”, esquecemos das armas e dos militares ou, mais propriamente, foram
as primeiras por uma política de desarmamento, recolhidas e, os últimos “controlados”,
chegando a ser alçado como ministros da defesa um “comunista” e depois um
“ex-comunista”. Mal comparando, essa situação, deu a impressão aos pardais, de
que a águia havia se tornado uma galinha.
Se
o consciente político retificara o inconsciente traumatizado, retirando dele a
preocupação do medo, no outro aspecto das relações objetivas, levou-nos a criar
falsas ideias que levaram a subjetividade coletiva a acreditar que o “senso
comum” passara a ser o oráculo das verdades. E eis que, de um momento para
outro, nos sentimos como se tivéssemos voltado à infância e reencontrado os
medos, principalmente aquele mais violento e sanguinário, o da ditadura
militar. E, as armas tão temidas pela esquerda, passaram, como o lema de, “Povo
armado jamais será dominado”, a ter o uso incentivado pela extrema-direita. Não
teria sido certo então, termos feito o mesmo?
Voltamos
à infância psíquica e os transtornos inconscientes voltaram a abalar os
comportamentos dos adultos dirigentes que, por serem os próprios terapeutas,
aplicam os mesmos métodos em busca das mesmas soluções. E eis que se pretende
fazer valer o senso comum, como fazem os negacionistas sobrepondo-o à ciência;
estes últimos porque a negam, os outros porque não recorrem a ela e atém-se à
necessidade do “projeto nacional”, como se fosse a planta da construção a ser
realizada pacificamente com o trabalho das segundas às sextas-feiras.
Quando
falamos em política, é verdade, nem sempre é possível pensar e agir
cientificamente. Há medidas emergenciais e táticas a escolher que nem sempre
foram comprovadas. Isso tudo é normal. Anormal é tentar reparar um mal, não
pela elaboração consciente, mas com terapias que levam às crenças do senso
comum a obscurecerem as reais contradições.
A
retificação consciente exige que haja a superação de todas as ideias
equivocadas, consideradas verdadeiras, principalmente aquelas que ignoraram as
classes e a função coercitiva e dominadora do Estado. Se a ferida foi redescoberta
e o medo de um novo golpe voltou a assombrar, é certo que os mesmos erros serão
cometidos ao se forem preservadas as causas daquele ferimento.
Retificar
os erros exige que as ideias sejam corrigidas e as medidas sejam reelaboradas.
Se compararmos o Estado a uma jaula, dentro dela, os trabalhadores continuam
sendo trabalhadores. Não ameaçam porque não sabem fazer o mal. Tornam-se tão
mansos que um dia podem ser tirados para fora e largados nas ruas. Mas, os
leões, na mesma jaula, continuam sendo leões. Perigosos e, quando soltos,
tornam-se ainda mais violentos em busca de condições de voltarem para dentro de
onde foram tirados.
De
fato, as forças da direita são muito mais pragmáticas quando lhes interessa.
Quem diria que elas viessem um dia escancarar a licença para a aquisição de
armas sendo que a maioria dos explorados são seus inimigos mortais? Por outro
lado, de que valeu as forças da esquerda institucional temer o golpe militar no
final do século passado, se foi a sua própria ingenuidade que o fez
recolocar-se como uma possibilidade real nos dias atuais?
Retificar
é o conceito a ser posto em discussão. Sem isto, o alvo estratégico não vai
além da porta da jaula dos leões, local onde são trancadas e amansadas todas as
potencialidades de rupturas e são alimentadas as condições para futuros golpes.
Ademar Bogo
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