E
eis que findamos a segunda década do século 21. Elas representam a sequência de
um processo político iniciado nas duas décadas finais do século 20, quando as
lutas sociais e políticas ganharam forma e conteúdo próprio, deixando para trás:
o regime totalitário, implantado pelo golpe militar de 1964, as experiências
dos partidos comunistas e os métodos de confronto por meio da luta armada para
ingressar e sustentar o processo que durou quatro décadas centrado nas lutas
reinvindicatórias e nas disputas eleitorais.
O feito histórico de unificar todas as forças sindicais,
populares, religiosas, estudantis, artística, intelectuais e partidárias para
lutar contra a ditadura militar, eleger democraticamente o presidente da
república e escrever a nova Constituição Federal, garantiu a superação dos
limites das formas anteriores de fazer política e inovou no envolvimento das
massas como sujeito coletivo, em busca das garantias, vistas como “direitos
sociais”.
O acerto na aplicação das táticas reinvindicatórias
durante os últimos quarenta anos é indiscutível; no entanto, aquilo que parecia
ser a maior das virtudes, com o tempo veio a ser o grande defeito. Quem viveu
na década de 1980 tem na lembrança que, naquela época praticamente tudo
convergia para o institucional com as exigências voltadas para a aplicação das
leis existentes ou para serem elaboradas novas leis, dentre elas a própria
Constituição Federal. As massas sensíveis às demandas conjunturais atendiam as
convocações e se somavam às grandes mobilizações. As categorias específicas
assumiam tarefas de enfrentamento por meio da realização de greves, ocupações
de terra, no campo e na cidade; saques coletivos na região nordeste que era
afetada pela seca; lutas por educação, saúde etc. As ações fluíam coordenadas
ou espontaneamente. Grupos localizados, movimentos, sindicatos e entidades em
geral, em busca de solução dos problemas sociais, rumavam na mesma direção de
encerrá-las nas mesas de negociações com os patrões, governadores, autoridades
e instituições estatais.
O fortalecimento da estratégia da “ação para a
negociação” para garantir os resultados, incentivava novas mobilizações com um
número ainda maior de integrantes. Esse aprendizado tático de “atacar e
negociar” forjou a consciência dos dirigentes de todas as organizações de
natureza sindical, popular e partidária, que retomaram de comum acordo o
clássico princípio do “contrato social” firmado entre o Estado e as forças
sociais mobilizadas.
A estratégia da “ação para a negociação” cumpria duas
funções: a primeira levava a ação a um desfecho quase sempre vitorioso e, a
segunda, legitimava a existência do movimento ou entidade organizadora de cada
ação. Por outro lado, respeitando o princípio contratualista, os proprietários
privados das fábricas e das terras, os governantes e o próprio Estado, também
ganhavam reconhecimento e afirmação superior por receberem as forças que
reinvindicavam soluções, isto porque, as audiências fluíam segundo os critérios
jurídicos e políticos da ordem dominante.
O
uso das forças policiais e a inoperância dos governantes reconhecidos como
representantes das classes dominantes, despertou, já no início da década de
1980, a motivação das forças sociais mobilizadas a tomar os governos, na ilusão
de que os “contratos” pudessem ser firmados entre as duas partes, com um grau
mais acentuado de amizade e tolerância. Esse parâmetro complementador da
estratégia reinvindicatória, perpassou as quatro décadas unificando os objetivos
das ações sindicais, populares e partidárias. O discurso da “moralização da
administração pública”, o “fortalecimento do estado mediante o combate ao
neoliberalismo” e a “participação ativa nas eleições em todos os níveis” atrelou-se
ao discurso da “distribuição de renda”, do “emprego”, “moradia”, “educação
pública de qualidade” etc. Ou seja, a identidade e a complementariedade das
proposições, populares, sindicais e partidárias, adequaram as reações ao limite
da ordem capitalista à mesma perspectiva programática do modelo desenvolvimentista
capaz de, ao mesmo tempo, beneficiar os mais ricos, garantindo-lhes os
tradicionais privilégios e lucros, como também os mais pobres, por meio das
políticas públicas.
Conscientes devemos estar desse processo que durou quatro
décadas, numa ascensão, em grande medida, sustentada pela pressão social
reinvindicatória que levou à vitória a estratégia respeitosa do limite da
legalidade, por isso não contribuiu para que os trabalhadores cumprissem com o
papel histórico, como foi o papel da burguesia na transição para o capitalismo
quando impulsionou as revoluções: industrial, francesa e liberais na Europa,
para afirmar o sistema e o Estado capitalista.
Em fim, após quatro décadas é hora de observar que a
relação histórica descrita pelo filósofo Hegel entre o “senhor e o escravo” não
foi superada nos meandros da política, isto porque, da existência de um depende
a existência e o reconhecimento do outro. Considerando que em certos momentos
os escravos puderam elevar a pressão sobre o senhor, a concordância em manter a
estrutura de dominação permaneceu a mesma. Os senhores mantiveram a supremacia
colocando-se a favor e alguns aspectos contra a ordem, para impor as medidas
coercitivas de controle das forças organizadas e das massas populares.
Para que os trabalhadores cumpram com o seu papel
histórico, considerando o processo construído em quatro décadas, firmado
basicamente sobre a estratégia da negociação com tendência à institucionalização
das relações políticas, é preciso, como disse Mao Tse-tung em 1944, para os
integrantes do partido, “que nos desfaçamos de todas as trouxas”. Segundo ele,
“para conquistar novas vitórias devemos apelar para que os quadros se
desembarecem das trouxas e ponham a máquina a andar. “Desembararçar-se das
trouxas” significa libertar o espírito daquilo que o atravanca”.
As “trouxas” podem ser entendidas como sendo as coisas desnecessárias
ou pouco úteis trazidas ao longo do tempo, mas que impedem os movimentos ou as
tomadas de decisões por causa do peso que elas acarretam. A título de
apreciação vejamos algumas, pois, se levamos a sério, em quarenta anos de
práticas corretas e equivocadas, há muitas coisas desnecessárias que precisamos
deixar para trás.
Se levarmos em conta que nos últimos quarenta anos a
sociedade capitalista se polarizou nos extremos formando duas minorias: os
capitalistas e os trabalhadores categorizados conforme preza a tradição,
veremos que, no meio dos dois pólos está a grande maioria da população,
desorganizada e deserdada das formas tradicionais sindicais e dos movimentos
populares renomados. É importante compreender que a força de ação e de transformação
está fora dessas formas que implementaram o princípio da “democracia representativa
parlamentar” também na representação social e de classe. As entidades
tradicionais burocratizadas tornaram-se redutos corporativos e se ocupam em
carregar suas próprias trouxas, sem considerar ou considerando apenas para fins
eleitorais, os grandes contingentes de massa inutilizados e vinculados à
política oficial pelos créditos emergenciais e bolsas que garantem a eleição e
reeleição dos governantes, isto porque, para as massas necessitadas, o
benefício é um favor que deve ser retribuído com o voto e o último que
beneficia ganha o seu respeito.
Por outro lado, a militância mais consciente formada durante
as últimas quatro décadas, principalmente, a mais recente que chegou a ser
denominada de “lutadores e lutadoras do povo” não está ligada oficialmente a
nenhum partido político, mas os carregam como sendo velhas trouxas, seguindo e
assumindo para si as agendas alienadoras dos mesmos, seja no que diz respeito
ao calendário eleitoral; na defesa das pautas que remetem à rotina parlamentar;
na reprodução dos discursos extraídos das disputas nos julgamentos tendenciosos
do poder judiciário ou nas disputas polarizadas na eleição do presidente do
Congresso Nacional, como está ocorrendo, como se fossem os dilemas mais
expressivos da sociedade.
Desfazer-se das trouxas, não deverá significar jogar tudo
fora para ficar apenas com a roupa do corpo, mas é importante considerar aquilo
que não deixa pôr a “máquina da luta de classes” para andar, e que, por causa
da “trouxa” gastamos toda a energia para fazer discursos sem sujeitos
organizados. Vamos a um exemplo: com o fim do crédito emergencial os partidos e
a militância acoplada, ao invés de propor mobilizar e organizar os necessitados,
procura costurar pelo alto, para obrigar o governo a voltar a garantir o
auxílio. Essa prática das bolsas, abonos e auxílios etc., têm servido desde a
década de 1990 para eleger e reeleger presidentes da república. Logo, a “trouxa”
do auxílio oferecido e negociado entre os poderes executivo e legislativo, deu
ao governo, no início da pandemia, credibilidade e aprovação. Desse modo, quem
supostamente se coloca contra a reeleição do atual presidente, mas por outro
lado insiste em manter o auxílio por meio de acordos no Congresso Nacional sem
que haja o mínimo de esforço para organizar os necessitados, não estaria
colaborativamente em campanha para reelegê-lo?
É nesse sentido que as novas gerações de militantes
precisam decidir se assume para si as “trouxas’ do processo anterior ou iniciam
uma nova história. Quais são as trouxas do processo anterior? Vejamos algumas: a)
partidos políticos institucionalizados que miram os governos e agem para
afirmar o Estado e o capital e tornam reféns de suas táticas a militância
social;b) a estratégica da “ação para a negociação” sem uma perspectiva
política para enfraquecer e derrotar os inimigos que ao dificultarem as
conquistas esvaziam e derrotam os movimentos; c) atrelar-se aos governos e ao
Estado com o objetivo de garantir a auto sustentação econômica e, por meio do dinheiro público garantir o funcionamento das
estruturas burocráticas; d) considerar que as plataformas de governo como sendo
o programa estratégico de superação do capitalismo quando na verdade todos os
governos estão a serviço da ordem capitalista; e) confiar que a formação das
frentes amplas ultrapassam os limites da imposição impostos pelo “Estado de
direito” e se o Estado capitalista for governado por pessoas amigas ele pode
ser útil aos trabalhadores.
Essas trouxas começarão a ficar pelo caminho, no momento em que a revindincação for substituída pela imposição e a democracia representativa for substituída pela presença da democracia popular.
Ademar Bogo
Autor do livro: Organização politica e politica de quadros.
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