Tivemos no Brasil, no ano de 1904, uma revolta significativa no Rio de Janeiro contra a obrigatoriedade da vacina responsável para combater a varíola e a febre amarela. Em grande medida essa resistência ocorreu porque o governo de Rodrigues Alves preocupado com a epidemia ordenou que a limpeza púbica removesse inclusive as moradias desordenadas e, a população mais pobre fosse obrigada a retirar-se das proximidades do centro da cidade. Insuflada por políticos, imprensa e militares que tinham como objetivo empreender um golpe de Estado, essa população mobilizou-se contra a vacina e, entre os dias 10 a 16 de novembro promoveu grandes mobilizações, tendo como vitória a mudança da lei, que tornou a vacina não obrigatória.
Essa intervenção contra a população mostra, desde sempre,
que Estado no capitalismo tem a função primordial de ser coercitivo. Segundo
Max Weber o Estado funciona como uma comunidade legitima que reinvindica o
monopólio da força para usá-la em um determinado território; sendo assim, ele é a única fonte do Direito que pode
fazer uso da violência para sustentar a ordem social formada por homens que
dominam outros homens.
Por
mais que a civilização tenha evoluído, as velhas diretrizes filosóficas e
sociológicas permanecem válidas. Auguste Conte, criador do positivismo é uma
referência remanescente sustentada por dois fundamentos estruturantes, “dinâmico
e estático” em vistas de funcionalizar o Estado e a economia, cuja
simplificação converteu-se no comprometimento do lema: “ordem e progresso”,
parâmetros que enraizaram o liberalismo como o espírito movimentador do capital,
encharcado de crises constantes, mas exigente com a estabilidade.
A estabilidade beneficia os burgueses e a classe média,
por fazer fluir e realizar os seus interesses na ordem social “harmonizada”.
Evidentemente, junto com a ordem vem o progresso favorecedor da acumulação da
renda e da riqueza. Por outro lado, a instabilidade, pode ser impulsionada
pelos dois lados. Quando provocada pelas massas populares, a classe dominante
exige a intervenção do Estado e se empenha em produzir novas leis coercitivas;
quando impulsionada pela própria classe dominante ela exige a colaboração do
estado e põe abaixo todas as leis que garantam os direitos sociais. Isso mostra
que o Estado nunca está a favor das grandes massas exploradas.
Conhecemos um tradicional tipo de instabilidade política
criado pelas lutas sociais. De um dia para outro a classe dominante sente-se
pressionada e, imediatamente recorre ao Estado para que ele atue no sentido de
reparar a ordem. Nesse sentido, costumeiramente, no capitalismo, a manutenção
da ordem, na ótica dominante, é fazer o Estado agir contra os pobres
mobilizados e organizados para que não coloquem em risco a propriedade privada.
Diante disso, as expressões intelectuais de natureza socialista consideram que
o Estado é tão inimigo dos trabalhadores quanto o capital e, ambos, cada qual
segundo as circunstâncias, precisam ser superados.
Por outro lado, em situações adversas, mesmo que
temporárias, quando a ordem está sendo ameaçada pela própria classe dominante e
sua auxiliar, a classe média, as massas populares e trabalhadoras em geral,
passam a perder os direitos, antes garantidos e a desordem instalada traz, não
apenas insegurança aos mais pobres, como também, aumenta a possibilidade de
aniquilamento e extermínio de grandes contingentes populacionais. Nesses
momentos, somente a mobilização e a reorganização coletiva podem obrigar os
governantes restabelecer a ordem, impedir o acesso aos privilégios dos mais
abastados e assegurar as garantias de vida e saúde dos mais pobres.
Toda essa introdução é para compreendermos o imbróglio
que enfrentaremos em relação à vacinação contra o Covid -19, em nosso caso,
propositalmente em atraso, indicando que, no ano de 2021, não serão atendidas
todas as pessoas do país, principalmente se for oficializado o agravante de
tornar a vacina uma mercadoria vendida nas clinicas particulares como está
sendo a venda dos testes de contaminação.
Em primeiro lugar é
preciso deixar claro que a vacina é de extrema importância para toda a
população, mas, principalmente para as massas populares e trabalhadoras que
estão em situação de vulnerabilidade social. Por isso, a luta é para que a
vacina seja gratuita e chegue a todos os lugares e em tempo igual também nos
interiores do país.
Em segundo lugar, a vacina como um bem de uso social não
pode ser transformada em uma mercadoria, isto porque, sendo uma necessidade
coletiva ela deve ser garantida pelos recursos públicos e, a iniciativa privada
deve ser proibida de transformar a doença em um grande negócio; poderá
colaborar se se dispuser distribuir e aplicar a vacina gratuitamente para a
população em geral, por isso, a vacina não pode ser paga por nenhum cidadão e,
para o acesso, todos devem seguir e respeitar as faixas de prioridade.
A justificativa da primeira hipótese é que, se a vacina
for pública e a sua aplicação for feita segundo os critérios de faixas,
descartam-se os critérios de classe e de condição social para recebê-la, logo,
a pressão para que a vacinação seja massiva e aplicada no mais curto espaço de
tempo possível, virá de todos os segmentos sociais que acreditam ser o
imunizante a forma mais eficiente de enfrentar e debelar a pandemia.
A negação da justificativa para a venda da vacina por
intermédio da iniciativa privada, apega-se à negação de direitos,
principalmente para as massas populares pobres, significará liberar que o Estado
se comprometa em garantir a vida dos mais abastados e, principalmente, dessa
parcela governista que se nega usar máscara e não respeita as normas de
isolamento. Essa postura desordenadora, anti-social, anti-humanitária,
anti-ética e de consciência pseudo fascista, buscará imunizar-se nas clinicas
particulares e alavancará o movimento de protesto contra o distanciamento
físico, atraindo para essa prática as pessoas ingênuas e indefesas. Como o
governo federal é adepto do não cumprimento de medidas protetoras, não coagirá
nem reprimirá essas iniciativas, tornando-se conivente com a desordem e com a
política direcionada para a continuação do extermínio da população. Com um
agravante, essa parcela ignorante e desvairada, adepta da política do armamento
da população que, não sendo coagida, passará a fazer uso também dessa
alternativa para intimidar a reação da popular contra o governo e a
mercantilização da vacina.
Na medida em que a política de vacinação do governo se
demonstrar inócua, retardada e insuficiente e o Estado não assegurar as
garantias de vida da população mais pobre, por estar assegurando a vacinação da
classe dominante nas clinicas particulares, a reação deve ser em defesa da vacinação
pública ao mesmo tempo que se lute para impedir que ela seja oferecida como
mercadoria.
A revolta da vacina, agora a favor da sua aplicação,
agirá contra as clinicas privadas, obrigando-as a prestarem serviço voluntário
e seguirem as prioridades da imunização estabelecida pelo poder público. Se já
de início o governo liberar para iniciativa privada para comercializar a vacina,
grande parte da população, principalmente a mais pobre, ficará sem ser
imunizada ou será muito tardiamente, fazendo com que a tragédia da contaminação
eleve também as estatísticas das mortes causadas pelo Covid-19.
O
ano começa com esse desafio de obrigar o governo e o Estado a intervirem e
coagirem a desordem que favorece os privilegiados. A vacina deve ser urgente,
massiva, gratuita e ser controlada e distribuída pelo poder público. Ao
contrário de 1904, as grandes massas hoje são favoráveis à vacina e, junto com
a defesa da mesma, devemos incluir a defesa dos direitos sociais, a volta do
auxílio emergencial e todas as políticas públicas que favoreçam os
trabalhadores e populações mais pobres.
Ademar Bogo
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