Quando falamos em “Democracia”,
vêm-nos de imediato a ideia da perfeição política que nos leva de volta à
Grécia Antiga ou até Atenas, cinco séculos antes de Cristo. O “poder do povo”
para Drácon e Sólon consistia a reunião da “assembleia do povo”, quando os
cidadãos podiam expressar livremente aquilo que desejavam e, por ser um número
significativo de pessoas, o lugar mais adequado para os encontros era na praça
central da cidade. O número de participantes, no entanto, não era tão
significativo; no governo de Cístenes chegou a seis mil pessoas, sendo que
quinhentas participavam também da “Bulé”
uma forma de conselho responsável para administrar a cidade.
Vista por alto, ou na
superficialidade, a “Democracia ateniense” para as culturas ocidentais passou a
ser o espelho, principalmente, a partir da Idade Moderna e na estruturação das
formas de governo no capitalismo. No entanto, se olharmos cuidadosamente
veremos que menos de trinta por cento da população ateniense, tinha o direito a
participar das decisões.
Desde 510 a 404 a.C, tempo que durou
a democracia ateniense, podiam participar das assembleias apenas os cidadãos
acima de trinta anos e apenas os que eram proprietários. Ficavam de fora os
jovens abaixo de trinta anos, os escravos, as mulheres e também os
estrangeiros. É evidente que, se observarmos como era exercido o poder antes
das reformas de Drácon e Sólon iremos nos convencer que, para aquela época,
esses senhores promoveram uma revolução política.
Os ideólogos da formação do Estado
capitalista buscaram na experiência grega, os fundamentos para estabelecer a
democracia representativa. Podemos encontrar relações diretas nos discursos dos
iluministas e o próprio Immanuel Kant quando racionalizou o individualismo, dando
à burguesia os fundamentos para ela mesma romper com o Direito Natural e
produzir o seu próprio Direito. Para Kant, a “união civil” é a união entre
todos os proprietários privados ou os possuidores de bens entre o povo. A
propriedade, como elemento diferenciador, permaneceu como critério para a
participação política e, no caso brasileiro, só veio a ser parcialmente
retirado, em 1932 quando permitiu o direito de voto também para as mulheres,
principalmente as viúvas que fossem proprietárias.
A democracia, na contemporaneidade,
é invocada sempre que aparece alguma ameaça de retrocesso institucional. As vozes
dos que sempre tiveram voz surgem por primeiro e convocam o povo a se manifestar.
Em épocas em que parte da elite dominante, das classes médias e das forças
reformistas e progressistas não sentem que a democracia está em perigo, agem
consensualmente para manter o “Estado de Direito”.
No entanto, se colocarmos um grau
maior na lente, podemos ler que, nas entrelinhas da democracia institucionaliza,
há uma satisfação dos interesses para os mesmos trinta por cento da população,
conforme funcionava a democracia na Antiga Grécia.
A democracia, na visão liberal e
pequeno burguesa é, principalmente, a garantia da liberdade, que se manifesta
por meio do funcionamento do mercado aonde também funciona o livre consumo; das
garantias individuais que asseguram o direito de posse; da permissão de
realizar eventos festivos; do direito à informação inclusive com a presença de uma
imprensa livre; da constância na realização dos concursos públicos; da presença
do capital internacional com as devidas honras aos investimentos privados; da
universidade pública e, sem prolongarmos muito, da presença “na festa da
democracia” quando todos são chamados a votar e a eleger dentre os candidatos
oferecidos para serem verdadeiros representantes.
É evidente que isto é satisfatório
para quem de fato não possui problemas de acesso à escola, ao atendimento à
saúde, não depende do transporte público, mora em lugares privilegiados com
ruas asfaltadas e iluminadas etc. Para estes é preciso que o Estado invista
mais em segurança e que os efetivos policiais estejam nas ruas para constrangerem
as iniciativas criminais. Ocorre que há uma outra parte da sociedade, que não
tem direito à “democracia satisfatória”, a não ser quando é chamada a
participar das eleições, porque o voto legitima a presença e também a ausência
daquela democracia.
Para essa grande parte da sociedade,
no cotidiano, aquilo que é feito com “ordem judicial” contra a criminalidade
elitista, para as populações pobres, essa ordem está na sola dos coturnos dos
policias, que arrombam as portas ou, no impulso das balas, que furam as paredes
e atingem os indivíduos de qualquer idade e os matam. Ou ainda, para os
trabalhadores que são revistados na ida e na volta ao trabalho ou para aqueles
que arriscam organizar mobilizações reinvindicatórias, as forças policiais
sempre estiveram do lado contrário e, por isso, o totalitarismo como regime de
governo, funciona o tempo todo.
Para a maioria das populações
periféricas existem apenas dois e não três poderes na república: o poder
policial e o poder das milícias armadas.
Nesse sentido, é importante que
nesses períodos como o que estamos vivendo, quando a “democracia satisfatória”
de coloração liberal, está ameaçada pelos próprios defensores, que as cabeças
conscientes refletiam e ajudem a pensar que a maioria da população nasce e
morre sem nunca ter experimentado o que é o gosto de usufruir verdadeiramente
da liberdade. E, considerar também que, o toque de recolher, quando não é
imposto pelas armas apresenta-se na falta de condições que impedem de ir e vir,
porque, a essas populações até o sagrado valor de troca lhes é negado.
Para além disso, é fundamental que
se perceba que a “democracia satisfatória” que garante o prazer de viver em
sociedade, para a minoria da população, é
enganosa e frágil como uma rede de pesca que um simples esforço do
tubarão descontente pode rompê-la. A ordem que satisfaz é aquela que favorece a
classe dominante e, sempre que essa ordem representa qualquer empecilho para
que os interesses sejam realizados, ela mesma se compromete a desrespeitar a
lei que sempre usou para coagir a maioria da população.
Acima de tudo, é importante
compreender que essa burguesia que conhecemos, já foi vista na sua origem, por
Karl Marx, como uma força altamente dinâmica e despudorada. Ela é assim porque
criou a si mesma na estranhas do feudalismo nas transações dos primeiros
comerciantes; depois criou o proletariado para o uso próprio. Para afirmar-se
realizou três revoluções: a industrial, a política simbolizada na Revolução
Francesa e, a liberal, no final da primeira metade do século dezenove. E ainda,
criou o Estado capitalista, o Direito positivo e a moral que legitima a
exploração do trabalho e considera que a riqueza é fruto das benções divinas.
Enfrentar uma criatura com essa genética, apenas com o voto, é como tentar
matar um rinoceronte com um garfo.
Por outro lado, devemos intuir que
as mudanças sociais não ocorrem sempre para frente, há momentos em que os
retrocessos colocam em risco a própria sobrevivência das espécies; esses
momentos estão se repetindo cada vez mais próximos um dos outros.
As mudanças para frente, neste estágio
do desenvolvimento do capitalismo, exigem, além da pressa, o entendimento dos
conceitos, para que não sejam repetidas as mesmas ilusões passadas e, acima de
tudo, ter clareza do que queremos edificar como substituir para a “democracia
satisfatória”. Nunca estivemos tão perto de temos um mundo a ganhar ou um mundo
a perder. A escolha é urgente.
Ademar Bogo
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