A História mostra que a ingenuidade
política tem limites. Chega um dia que até os menos conscientes se dão conta de
que certas orientações políticas são sinceras, mas pouco apetitosas, enganam e,
de tempos em tempos impõem grandes sacrifícios.
Maquiavel, com toda a sua astúcia,
discerniu que um governo (principado), conforme as oportunidades é constituído:
pelo povo ou pelos grandes. Supostamente, vendo assim, poderíamos imaginar que
estaria ele defendendo a possibilidade de se estruturar um “governo popular”
com a autonomia,. Nada disso. Segundo o pensador, quando “os grandes” acham não
ser possível resistir ao povo, começam a ceder prestígio a um dentre ele e o
fazem príncipe, para, sob a sua sombra dar expansão ao seu apetite político.
O “apetite político” dos “governos
populares” em nosso tempo foi até os limites do tamanho do prato da lei. E,
literalmente, como é nas refeições, sendo minúsculo e reduzido o prato, permiti-se
a repetição, a maioria com dois mandatos, embora que outros os estenderam um
pouco mais.
O que fizeram até aqui os “príncipes
do povo”? Atuaram sobre as dívidas sociais históricas que as revoluções
liberais burguesas, não ocorridas na América Latina, não fizeram. Mas
legitimaram o poder do capital e do Estado. Por isso, de acordo com os limites
das leis e do tamanho dos orçamentos, os “processos democráticos liberais”,
constituídos pelos “governos do povo”, atenderam por duas décadas, o apetite
dos direitos constitucionais controlados, assegurando os direitos patrimoniais,
financeiros e especulativos para os capitalistas.
Não custa recordar que o capitalismo
é o modo de produção no qual vigora o poder do capital e, como ele está
encarnado nos capitalistas, essa classe para assegurar o poder criou o Estado,
que pode ser governado por diferentes ideologias, basta que elas não atentem
contra as leis estruturais da produção, exploração, concentração e expansão dos
capitais.
Dito e feito. Os dominantes não
podendo resistir aos descontentamentos populares, optaram por ceder, logo após
as ditaduras distribuídas intencionalmente pelo Continente Americano, na
segunda metade do século passado, para que as massas populares, sindicais,
religiosas, culturais etc., intentassem, em dois turnos, eleger o governante de
sua preferência. O êxito alcançado possibilitou a repetição de mandatos e, até
mesmo a promoção de sucessores.
Com o apetite político reduzido (um
pouco menos na Venezuela) e respeitoso de não tocar na fatia que pertencia ao
capital, os governos assumiram o papel de coordenadores das festas entre
amigos, nas quais nem as polícias foram requisitadas. As forças armadas
permaneceram onde estavam à espera de ordens, que nunca seriam dadas nos
governos tidos como “esquerda”.
Chegamos então a uma fácil
conclusão. Se o capitalismo é o modo de reprodução do capital e o Estado é o
instrumento de poder dos capitalistas, criado por esta classe para assegurar o
funcionamento do sistema, na medida em que surgem as crises e afetam as taxas
de lucro, esta mesma classe foi buscar de volta o comando da administração
política. E o fez com toda a desfaçatez possível.
Disfarçadamente, agiram as forças
burguesas por dentro da ordem institucional e, “respeitosamente” encaminharam
as suas determinações por dentro das instituições que asseguram as
justificativas e moral. Se algo desse errado, não aceitariam os resultados e
chamariam as forças policiais para reprimir o povo. Foi assim que vimos
retornar “o governo dos grandes” que passam a retirar os direitos alcançados no
passado, pelo fraco apetite democrático das forças que chegaram ao governo.
O “governo dos grandes”, com o apoio
militar, implantou o “novo” sistema do “totalitarismo jurídico”, e pôs em crise
o conteúdo dos conceitos históricos, que os estudiosos não conseguem mais
classificar o que foi desclassificado na forma e no conteúdo. Sendo assim, os
golpes não são golpes, as ditaduras não são ditaduras e as repressões contra o
povo que, por meio de seus representantes governavam até ontem, ao defenderem
os mesmos interesses, colocam em risco “o Estado de direito”.
O povo não recorre à ciência para se
defender, mas os seus representantes deveriam recorrer antes de iludi-lo que o
caminho da institucionalidade nos dá tudo pela via pacífica. Deveriam os
“partidos do povo”, estudar a natureza da intima estruturação da sociedade
civil e o Estado; da relação que há entre a base econômica ou infraestrutura,
como disse Marx, que sobre ela se levanta uma superestrutura política, jurídica
e ideológica e isto tudo está voltado para fazer funcionar o capitalismo.
Meter-se ali dentro, é cumprir, temporariamente, dentro da “casa grande”, os
serviços de manutenção para o bem estar dos dominadores.
Percebemos agora que, a classe
dominante faz política, segundo Maquiavel, com o “príncipe do povo”, sem
violência e, com os “príncipes próprios”, no mais alto grau, que chegam a
denominá-los “mitos” que não se furtam a usar da violência como forma de
eliminação da oposição, da mentira, como ideologia e, da lei para impor as
medidas destrutivas e garantir a ordem capitalista.
O totalitarismo jurídico, ao mesmo
tempo em que suplantou os golpes de Estado tradicionais autoriza o uso de todos
os mecanismos repressivos, oficiais, quando os magistrados confirmam a
desigualdade de direitos e, marginais, quando as milícias ilegais agem sem punição.
A “ordem democrática” e o “Estado de
direito” que são conceitos estabelecidos para dizer que todos estão submetidos
ao “império da lei”, não são verdadeiros. No totalitarismo jurídico, as leis,
quando não atendem os interesses da classe dominante, são modificadas e, se
atendem os interesses do povo, são apagadas. Por isso, se na democracia as
garantias estão nos “limites do apetite” ingênuo, de que tudo deve ser feito
respeitando as leis vigentes, no totalitarismo as garantias estão ligadas à
concordância.
Para quem luta e tem consciência
critica, as duas situações são incômodas. Aceitar os limites é contentar-se com
o pouco e correr o risco de tudo perder. Concordar com o totalitarismo é
massacrar as próprias causas e apegar-se aos limitados princípios da
socialdemocracia é apelar pela automutilação estratégica.
Se o totalitarismo jurídico é uma
mudança para trás, está no previsível, de que o capitalismo em tempos cada vez
menores precisa provocar acertos, assim ocorreu com os golpes militares e as
ditaduras implantadas onde se julgou necessário no século passado e, assim
ocorre no presente com as intensas intervenções políticas, asseguradas pelo
poder judiciário.
Se duros são os ataques, frágeis são
as respostas. Em resposta à onda totalitária, aqui, pedimos “Lula livre”, os
bolivianos pedem a volta do presidente que separou-se deles e optou pelo
exílio; os chilenos exigem a nova constituição que aqui conquistamos em 1988,
mas que, aos poucos foi deformada com inclusão
de mais de 100 emendas.
É verdade que muitos dirão que não
se pode “fazer tudo de uma vez” e que é
preciso ir “acumulando forças” para, posteriormente impor as mudanças mais
arrojadas. Mas, se olharmos ao redor, veremos que nem os avanços nos direitos
conquistados foram desconstruídos, como também as forças acumuladas foram
deseducadas.
Ao povo explorado e submisso, que
não pode mudar de lugar, exilar-se nem tampouco concordar com os poderes
representativos ou totalitários, só resta uma saída, mudar de sociedade. Para
isto é preciso que compreenda e construa a unidade internacional, para que uma
população não seja massacrada isoladamente ao lado da divisa do país vizinho
que se comporta como se nada fosse.
Ademar Bogo
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