domingo, 4 de agosto de 2024

INTERESSES E DIREITOS

                               

            Embora no interior do conceito de “democracia” a ideia estampe um desejo comum, na realidade, interesses e direitos obrigam-nos a dizer que vemos o mesmo conteúdo de modo diferente, isto porque, ela nunca foi o “governo do povo”. Aristóteles já alertava no seu tempo sobre os três tipos de governos possíveis, compostos nas três formas: Monarquia (governo de um só); Aristocracia (governo de um grupo) e, Democracia (governo de muitos, mas que na prática tornar-se-ia o governo de um grupo).“Distinguimos, em nosso estudo das constituições, três constituições puras: a realeza, a aristocracia, a república, e três outras que são um desvio: a tirania para a realeza. A oligarquia em relação à aristocracia e a democracia quanto à república”.[1] No entanto, para o filósofo a democracia, apesar de tudo era a forma menos pior.

            Na contemporaneidade somos constantemente abalados com o terror de que “a democracia está ameaçada”. Não deveria ser assim, porque, se ela “emana do povo”, o governo da maioria, em circunstância alguma, poderia ser abalado, isto porque, pela simples força em ação, a maioria sufocaria a minoria inimiga. Acontece que a maioria democrática em nosso tempo, aprendeu a lutar pelo poder com a simples presença nas urnas para depositar o voto a favor de um representante capaz de propor e garantir os direitos fundamentais. No entanto, de seu lado, a minoria articula-se enquanto elite, convoca as forças armadas para defendê-la e utiliza os meios de comunicação para convencer os pobres a ajuda-los a defender os interesses burgueses.

            Já analisamos esta tese de Karl Marx, mas nunca é demais recolocá-la: “No mercado de mercadorias apenas se confrontam os possuidores de mercadorias, e o poder que exercem uns sobre os outros é somente o que deriva de suas mercadorias”[2]. Isto nos remete de imediato a sabermos, se o poder que disputamos nos processos eleitorais está de fato situado na política ou, pelo contrário, encontra-se materializado principalmente na estrutura econômica da sociedade? Dada a resposta saberemos se o poder “emana” das pessoas ou das mercadorias ou outras formas de riqueza.

            Quando desprezamos o poder da riqueza, personificada nos “ricos”, seja ela na forma de mercadoria, dinheiro ou capital, ao partimos para as disputas políticas com eles, procuramos convencer-nos de que teremos, dentro da ordem, as melhores propostas e possibilidades para superarmos as diversas crises. Se assim pensamos, desconhecemos que não foram os trabalhadores que criaram as crises e, sendo elas estruturais, por maiores sucessos que tivermos, elas retornarão e corroerão a nossa credibilidade, invertendo-a, pelo voto ou pela força de golpes de Estado, para colocá-la abaixo dos cinquenta por cento e apagarem os pequenos avanços conquistados no campo dos direitos.  

            Desde a Antiga Grécia a república e a democracia são as melhores referências políticas civilizatórias; foram elas inclusive confirmadas pela Revolução Francesa de 1789. De lá para cá os parâmetros para organizar e gerir o Estado capitalista quase sempre teve as eleições como sinônimo de vigor dos processos democráticos. Tanto é verdade que se confirma se um governo é democrático, se ele passou, foi aprovado e respeito o processo eleitoral.

            No entanto, apesar desses anseios e demonstrações da vontade soberana, as democracias não conseguiram, de forma permanente, sustentar e proteger a vontade da maioria nem quando estiveram em vigor e, pior ainda, quando as intervenções tirânicas, na forma de golpes interferiram para garantirem os interesses da minoria. Exemplo disso podemos confirmar observando a história da República brasileira. Grosso modo, em 135 anos, tivemos, pelo menos, dez golpes de Estado, representando, em média, um a cada treze anos e meio.

            Diante disso, é importante perguntar: se a democracia é o melhor regime, defendido e legitimado pela maioria dos cidadãos de um país, por que, de tempos em tempos acontecem as violentas recaídas para o totalitarismo e, mais ainda, por que a maioria da mesma população não defende esse bom regime como princípio fundamental da civilização de um povo?

            As respostas podem ir em diversas direções, aqui vamos sintetizá-las em quatro fatores fundamentais:  O primeiro diz respeito à supremacia do poder da riqueza, o qual caracteriza a naturalidade da sociedade desigual, devendo ela, ordeiramente, funcionar e garantir à minoria a supremacia dos seus interesses sobre a maioria. O segundo fator está ligado à natureza perversa da civilização, que não consegue seguir em frente sem lançar mão da violência. Esta pode estruturar-se por meio da articulação das forças internas de um país ou pela interferência direta do imperialismo. E, em terceiro lugar, a fragilidade na forma de estruturar a democracia representativa. Por natureza ela desautoriza a participação permanente da maioria que a afirmou pelo voto, dando condições para que os políticos eleitos formem grupos oligárquicos, capazes de elaborarem leis e efetuarem reformas que chegam ir contra os direitos da maioria da população. Diante dessa desmobilização, a maioria anterior torna-se minoria posterior. O quarto fato diz respeito a unidade entre a riqueza e o seu possuidor. Não é possível alcançar a mais simples justiça social sem desencarnar o capital do capitalista e, por essa razão nunca se poderá dizer que este último seja um democrata aliado dos trabalhadores.

            No capitalismo, a democracia, mesmo na forma representativa se mantém, enquanto garante os interesses da classe dominante. As aristocracias formam-se no interior dos governos trocando apoio por ministérios e, no parlamento por meio de “bancadas identitárias” seguindo sempre os interesses e privilégios de grupos minoritários articulados pelo grande capital.  

            Por mais que acreditemos na democracia, sem organização suficiente defendê-la contra o imperialismo, a classe dominante com seus grupos oligarcas e totalitários, a sensação será sempre, que a casa reconstruída na várzea pode a qualquer momento ser levada pela enchente e arrastar para longe os esforços ali empreendidos. Sabendo disso, deveríamos então desistir de lutar por melhorias, sendo que tudo poderá ser arrasado na década seguinte? Não, ao contrário, a maioria que se esforça por estabelecer a ordem democrática deve também empenhar-se na sua preservação. Para que isto ocorra, é preciso organizar-se para uma vez constituída a maioria, jamais deixar de sê-la. No entanto, para que isso ocorra é preciso, com essa força, empenhar-se todos os dias, para tomar das mãos da classe dominante as mediações que permitem a ela voltar para implantar o totalitarismo.

                                                                                               Ademar Bogo



[1] ARISTÓTELES. Política (livro VI). São Paulo Scala, 2008, p. 169.

[2] MARX, Karl. O capital. Vol. Rio de Janeiro, 1996, p. 180.

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