domingo, 11 de agosto de 2024

A DIALÉTICA DO FEITICEIRO

 

            A política nas últimas décadas tem se tornado um espaço privilegiado para exercitar opiniões. As teorias não são mais formuladas em programas e manifestos, nem produzidas sobre temas, como fizeram os clássicos das revoluções que, após algum tempo, publicaram e tornaram “obras completas” escritas em dezenas de volumes. Pouco já se escreve sobre as contradições fundamentais e os aspectos fundamentais das contradições. Os textos seguem a ordem dos discursos formulados espontaneamente, baseados, não no movimento dialético das forças oponentes, mas na possibilidade de ganhar ou perder apoio. A rede social exige o cuidado com imagem e não com o intelecto.

            Os projetos de poder assumidos pelas permanentes vanguardas institucionalizadas, formadas por parlamentares eleitos que desejam eternamente serem reeleitos e, por isso, são forçados pelas circunstâncias a deixar de lado a divisão presente na sociedade de classes. Nos países capitalistas, essas forças conduzem os processos desconsiderando as contradições e, enfeitiçados pelo convite à governabilidade e, em nome da democracia, tentam enfeitiçar as massas para que sejam tolerantes. Marx e Engels apontaram no Manifesto Comunista que: “O sistema burguês de produção, de troca e de propriedade da sociedade moderna lembra um feiticeiro que já não consegue controlar os seus poderes infernais desencadeados por suas palavras mágicas.”[1]

            Por outro lado, os governantes progressistas, confirmados pelos pelitos eleitorais, nos regimes democráticos representativos, arrastam atrás de si dezenas de organizações e movimentos sociais, enfeitiçando-os com os brilhos e unções de seus representantes com cargos e recursos financeiros. Os que ficam de fora, por excesso de tolerância enfraquecem-se e tornam-se incapazes de marcarem posições significativas. Por sua vez “os feiticeiros” parecem esquecer que os mandatos possuem prazo determinado para iniciar e terminar; evidentemente que contam sempre com a recondução.

As eleições por sua vez, não eliminam os interesses das partes envolvidas, tanto assim que a condução da governança terá pela frente, a força da oposição, ultimamente com força de massa mobilizada. No entanto, se Marx se deu conta o sistema burguês e certamente quem governa é um “feiticeiro”, que já não controla os seus próprios poderes (não importa se é de direita ou de esquerda) precisa atrair para si os apoios para a reeleição. É aqui que entra o movimento da dialética, para mais ou para menos, ou seja, poderá tornar-se mais forte durante ou muito mais fraco, durante o mandato.

            Provavelmente quem está profundamente envolvido com o processo político eleitoral, não verá outra solução para fazer política, sem mirar os cargos nas estruturais governamentais. O equívoco não está em querer tomar o governo e governar. Essa estratégia foi usada inclusive em meio aos processos revolucionários vitoriosos, mas em aceitar o jogo das “forças infernais” e acreditar que, pelo impedimento de certos grupos representantes do capital serem eleitos, o mal será menor ou até mesmo controlado.

            Dominados pelo feitiço e por esse “ópio eleitoral”, as vanguardas institucionalizadas, enfrentam críticas de dois polos extremos que apostam no retrocesso. A extrema-esquerda caracterizada pela insistência em priorizar as tarefas futuras mas com plena desconsideração das tarefas do presente, impõe um discurso radical e totalmente desadaptado da realidade, por isso atrai poucos adeptos. Na outra ponta está a extrema-direita que desenvolve as tarefas do presente pensando em manter atualizado o passado pela continuidade da dominação econômica, do conservadorismo moral e cultural. No centro, esquerda e direita, costumeiramente aliadas nas disputas eleitorais buscam realizar as tarefas do presente para permanecerem no presente, fazendo o possível para não ferir os interesses dominantes e assistir as massas mais pobres.

            Considerando que esses governantes não se preocupam com o enraizamento orgânico de sua força, sustentam-se apenas na opinião pública favorável. Mas a opinião é como o sabor do café matinal: um simples descontrole de um ingrediente muda tudo. Logo, a democracia representativa é favorável para quem possui popularidade, por isso ela tenderá a ser cada vez mais populista. No entanto, esses processos eleitorais são cada vez mais de alto risco, por serem vigiados e contestados ferrenhamente pelas forças imperialistas, que como “força infernal” atuará sempre imensa por meio de farsas e tragédias. Quando as forças de direta ganharem a democracia será consolidada, quando perderem, contestarão e forçarão os resultados a seu favor.

            Na medida que as forças de “esquerda”, investem somente em eleições, se desmobilizam e não há como, desorganizadamente, enfrentarem as investidas e os protestos da extrema-direita. Falta, portanto, dar-se conta de que, para além das três forças postas atualmente no cenário, é preciso contemplar a quarta possibilidade de construção, que é a força revolucionária. Esta deve caracterizar-se pela realização das tarefas do presente para alcançar o objetivo futuro de superação do capitalismo no futuro. Metaforicamente podemos imaginar que, se as três posições, de algum modo, enfeitiçadas, circulam esbravejando na base da escada, as forças revolucionárias devem subir nela e seguir decididamente para chegarem no topo.

            Podemos concluir dizendo que, não basta combater os feiticeiros do sistema de produção e da política que viciam as massas com o “opio eleitoral”; é preciso dar um passo à frente no caminho da superação da feitiçaria capitalista, a verdadeira religião da classe dominante e seus aliados. Agarrar com força todas as tarefas do presente, com a franca decisão de alcançar as condições para realizar as tarefas do futuro, é, provavelmente, a decisão mais urgente a se tomar.

                                                                       Ademar Bogo



[1] MARX/ENGELS. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global, 1984, p. 23.

domingo, 4 de agosto de 2024

INTERESSES E DIREITOS

                               

            Embora no interior do conceito de “democracia” a ideia estampe um desejo comum, na realidade, interesses e direitos obrigam-nos a dizer que vemos o mesmo conteúdo de modo diferente, isto porque, ela nunca foi o “governo do povo”. Aristóteles já alertava no seu tempo sobre os três tipos de governos possíveis, compostos nas três formas: Monarquia (governo de um só); Aristocracia (governo de um grupo) e, Democracia (governo de muitos, mas que na prática tornar-se-ia o governo de um grupo).“Distinguimos, em nosso estudo das constituições, três constituições puras: a realeza, a aristocracia, a república, e três outras que são um desvio: a tirania para a realeza. A oligarquia em relação à aristocracia e a democracia quanto à república”.[1] No entanto, para o filósofo a democracia, apesar de tudo era a forma menos pior.

            Na contemporaneidade somos constantemente abalados com o terror de que “a democracia está ameaçada”. Não deveria ser assim, porque, se ela “emana do povo”, o governo da maioria, em circunstância alguma, poderia ser abalado, isto porque, pela simples força em ação, a maioria sufocaria a minoria inimiga. Acontece que a maioria democrática em nosso tempo, aprendeu a lutar pelo poder com a simples presença nas urnas para depositar o voto a favor de um representante capaz de propor e garantir os direitos fundamentais. No entanto, de seu lado, a minoria articula-se enquanto elite, convoca as forças armadas para defendê-la e utiliza os meios de comunicação para convencer os pobres a ajuda-los a defender os interesses burgueses.

            Já analisamos esta tese de Karl Marx, mas nunca é demais recolocá-la: “No mercado de mercadorias apenas se confrontam os possuidores de mercadorias, e o poder que exercem uns sobre os outros é somente o que deriva de suas mercadorias”[2]. Isto nos remete de imediato a sabermos, se o poder que disputamos nos processos eleitorais está de fato situado na política ou, pelo contrário, encontra-se materializado principalmente na estrutura econômica da sociedade? Dada a resposta saberemos se o poder “emana” das pessoas ou das mercadorias ou outras formas de riqueza.

            Quando desprezamos o poder da riqueza, personificada nos “ricos”, seja ela na forma de mercadoria, dinheiro ou capital, ao partimos para as disputas políticas com eles, procuramos convencer-nos de que teremos, dentro da ordem, as melhores propostas e possibilidades para superarmos as diversas crises. Se assim pensamos, desconhecemos que não foram os trabalhadores que criaram as crises e, sendo elas estruturais, por maiores sucessos que tivermos, elas retornarão e corroerão a nossa credibilidade, invertendo-a, pelo voto ou pela força de golpes de Estado, para colocá-la abaixo dos cinquenta por cento e apagarem os pequenos avanços conquistados no campo dos direitos.  

            Desde a Antiga Grécia a república e a democracia são as melhores referências políticas civilizatórias; foram elas inclusive confirmadas pela Revolução Francesa de 1789. De lá para cá os parâmetros para organizar e gerir o Estado capitalista quase sempre teve as eleições como sinônimo de vigor dos processos democráticos. Tanto é verdade que se confirma se um governo é democrático, se ele passou, foi aprovado e respeito o processo eleitoral.

            No entanto, apesar desses anseios e demonstrações da vontade soberana, as democracias não conseguiram, de forma permanente, sustentar e proteger a vontade da maioria nem quando estiveram em vigor e, pior ainda, quando as intervenções tirânicas, na forma de golpes interferiram para garantirem os interesses da minoria. Exemplo disso podemos confirmar observando a história da República brasileira. Grosso modo, em 135 anos, tivemos, pelo menos, dez golpes de Estado, representando, em média, um a cada treze anos e meio.

            Diante disso, é importante perguntar: se a democracia é o melhor regime, defendido e legitimado pela maioria dos cidadãos de um país, por que, de tempos em tempos acontecem as violentas recaídas para o totalitarismo e, mais ainda, por que a maioria da mesma população não defende esse bom regime como princípio fundamental da civilização de um povo?

            As respostas podem ir em diversas direções, aqui vamos sintetizá-las em quatro fatores fundamentais:  O primeiro diz respeito à supremacia do poder da riqueza, o qual caracteriza a naturalidade da sociedade desigual, devendo ela, ordeiramente, funcionar e garantir à minoria a supremacia dos seus interesses sobre a maioria. O segundo fator está ligado à natureza perversa da civilização, que não consegue seguir em frente sem lançar mão da violência. Esta pode estruturar-se por meio da articulação das forças internas de um país ou pela interferência direta do imperialismo. E, em terceiro lugar, a fragilidade na forma de estruturar a democracia representativa. Por natureza ela desautoriza a participação permanente da maioria que a afirmou pelo voto, dando condições para que os políticos eleitos formem grupos oligárquicos, capazes de elaborarem leis e efetuarem reformas que chegam ir contra os direitos da maioria da população. Diante dessa desmobilização, a maioria anterior torna-se minoria posterior. O quarto fato diz respeito a unidade entre a riqueza e o seu possuidor. Não é possível alcançar a mais simples justiça social sem desencarnar o capital do capitalista e, por essa razão nunca se poderá dizer que este último seja um democrata aliado dos trabalhadores.

            No capitalismo, a democracia, mesmo na forma representativa se mantém, enquanto garante os interesses da classe dominante. As aristocracias formam-se no interior dos governos trocando apoio por ministérios e, no parlamento por meio de “bancadas identitárias” seguindo sempre os interesses e privilégios de grupos minoritários articulados pelo grande capital.  

            Por mais que acreditemos na democracia, sem organização suficiente defendê-la contra o imperialismo, a classe dominante com seus grupos oligarcas e totalitários, a sensação será sempre, que a casa reconstruída na várzea pode a qualquer momento ser levada pela enchente e arrastar para longe os esforços ali empreendidos. Sabendo disso, deveríamos então desistir de lutar por melhorias, sendo que tudo poderá ser arrasado na década seguinte? Não, ao contrário, a maioria que se esforça por estabelecer a ordem democrática deve também empenhar-se na sua preservação. Para que isto ocorra, é preciso organizar-se para uma vez constituída a maioria, jamais deixar de sê-la. No entanto, para que isso ocorra é preciso, com essa força, empenhar-se todos os dias, para tomar das mãos da classe dominante as mediações que permitem a ela voltar para implantar o totalitarismo.

                                                                                               Ademar Bogo



[1] ARISTÓTELES. Política (livro VI). São Paulo Scala, 2008, p. 169.

[2] MARX, Karl. O capital. Vol. Rio de Janeiro, 1996, p. 180.