domingo, 26 de maio de 2024

LIBERDADE AUTORITÁRIA


            Há muitos motivos para acreditarmos que vivemos em uma sociedade livre, tanto pelas sensações liberais quanto pelas proposições filosóficas e sustentações jurídicas. Como afirmou Hegel no seu livro, “Princípios da filosofia do Direito” parágrafo 298: “O poder legislativo é constituído pelas leis enquanto tais, na medida em que elas carecem de determinações complementares, e pelos assuntos interiores que são, graças ao seu conteúdo completamente gerais”. Como parte da Constituição e, sendo um poder legalmente constituído, a liberdade depende dos interesses das forças representadas e legitimadas em cada eleição. Por essa razão, declarou Marx, em sua crítica a essa mesma Filosofia do Direito que, o poder legislativo, “Ele ultrapassa a Constituição”.

            Evidentemente, a Constituição deve sempre representar os interesses de toda a sociedade e, embora, no caso brasileiro, ela tenha sido elaborada em 1988 pelos deputados e senadores, não é definitiva e sempre pode ser modificada, pondo-se inclusive em desacordo com as decisões anteriores. Um desses casos é o projeto de lei em que impede o acesso aos benefícios assistenciais a “condenados por invasão de propriedade urbana e rural”, em tramitação no Congresso Nacional.

            O primeiro argumento contra este disparate jurídico, é a confrontação com o artigo 184 da Constituição Federal, aprovada em 1988. Mas isto não é suficiente, porque uma lei não precisa ser coerente com o que é justo ou injusto, ela precisa determinar o que deve ser feito com o interesse manifesto. Nesse sentido é importante diferenciar o que é um “problema social” e um “interesse particular”.

            Quando, por ocasião da identificação de um problema social, para que as autoridades possam enfrentá-lo e agirem dentro da lei, há que ter uma regulamentação jurídica. Trata-se do “Direito público”; este, representa as leis universais elaboradas para o próprio Estado utilizá-las a seu favor. Por outro lado, conhecidamente, existem os interesses particulares, que exigem também leis regulamentares e que, embora sejam elas elaboradas pelo Poder Legislativo, são direcionadas para o “Direito privado”.

            Quando falamos em “Direito privado”, podemos compreender a sua importância para garantir a própria liberdade individual, isto porque, se não existirem leis reguladoras, ninguém poderá ter certeza de que qualquer coisa seja sua como propriedade particular. Porém, sempre nos deparamos com os interesses gerais, voltados para o bem comum e os caprichos egoístas e corporativos, permeando a consciência dos representantes do povo no parlamento.

            Faz parte da função dos deputados e senadores elaborarem leis federais e atrelá-las à Constituição, no entanto, há leis voltadas para a garantia de direitos gerais, que podemos chama-las de “Liberdade de direitos”, elaboradas após intensas pressões populares, e outras que se situam no campo das garantias dos interesses grupais, possíveis de serem denominadas de “Liberdade autoritária”; é nesse limite que se situa a linha divisória da desobediência civil e a incrementação do totalitarismo jurídico. Todos sabemos que no parlamento os representantes não são da sociedade, mas de grupos, corporações e classes que jogam, cooperam entre si e aniquilam inimigos mais fracos. A vontade dos leitores acaba na sala de votação quando digita os números das candidaturas.

 Em termos de consequências históricas, as articulações de grupos e corporações para legitimar perseguições como essa “Lei contra invasão”, pode ser comparada a duas possibilidades de retrocesso: a primeira na esfera sindical e a segunda na esfera política.

 Em 28 de junho de 1989 foi aprovada a Lei 7.783 que estabeleceu o direito de greve. Muitas coisas, que não vem ao caso detalhar, foram modificadas para limitar o alcance da Lei, mas ela continua ativa. Impedir hoje que os trabalhadores se manifestem e pressionem, tendo a liberdade de escolherem as formas de luta mais adequadas, seria (mesmo não estarmos vivendo sob o regime militar), um atentado contra o direito a autodefesa coletiva contra os baixos salários e demais direitos trabalhistas. A ameaça de cortar, por 8 anos o acesso aos benefícios assistenciais, às pessoas mais pobres que participarem de ocupação de terra, nesse estágio do desenvolvimento do capitalismo em que a tecnologia reduz a possibilidade de arranjar trabalho, é condenar os grandes contingentes das massas pobres, a ficarem dependentes dessas miseráveis políticas. Se no passado os escravizados pertenciam aos proprietários de terra, à Igreja, políticos e coronéis, as atuais massas famélicas comporão o patrimônio político dos governantes e candidatos, que sempre defenderão a manutenção da assistência às pessoas carentes em troca de votos.

O segundo exemplo diz respeito ao totalitarismo político. Em 13 de dezembro de 1968 foi decretado, pelo Regime Militar, o Ato Institucional número 5, limitando todo e qualquer tipo de manifestação e o cerceamento de todas as formas de liberdade. A lei acima mencionada, agora elaborada no liberalismo democrático, cumpre, mesmo que seja direcionada apenas para as populações mais pobres, com a mesma função de reprimir, intimidar e proibir qualquer tipo de pressão contra a propriedade privada da terra.

Esses aspectos nos revelam que é ilusória a democracia propagada por setores também de esquerda que, satisfeita com as cadeiras conquistadas no parlamento, se presta ao serviço de participar e, mesmo votando contra, legitima os desejos dos grupos fascistas e interesseiros minoritários da burguesia proprietária de terras.

Resta aos movimentos sociais rearticularem as suas forças e reformularem as suas táticas de luta direcionadas para, a desobediência civil e a insurreição popular.

                                                                       Ademar Bogo

domingo, 5 de maio de 2024

ALIENAÇÃO DE ESQUERDA


O filósofo brasileiro Leandro Konder, publicou em 2009, o livro: “Marxismo e alienação”  e, em uma das partes discutiu, a “Alienação política”, colocando assim o problema: “Cindindo a atividade humana em duas esferas aparentemente autônomas e frequentemente contraditórias – a esfera da vida pública e a esfera da vida privada – a alienação possibilitou o aparecimento dessa ilusão segundo a qual a atividade do indivíduo na esfera da vida particular permitiria um abandono das suas  responsabilidades como cidadão”. (2009, p.183).[1]

Se quisermos identificar para, descobrirmos a causa dessa doença burguesa, iremos encontrar alguns vestígios, em alguns países da Europa, nos séculos que antecederam a Revolução Francesa; mas, principalmente, depois dela, quando as Repúblicas foram organizadas e o Estado capitalista passou a vigorar como instrumento de poder centralizado. Sendo a classe dos produtores também a força dirigente, para agilizar e evitar que os próprios interesses fossem diluídos, fortaleceu-se o conceito de “Democracia representativa”.

O individualismo concorrente e competitivo burguês, somente poderia se sustentar, se o conceito de liberdade hegeliana fosse implementado. Para tanto, as leis deveriam ser a referência para que todos guiassem os próprios passos. Com esse entendimento, facilmente impuseram a alienação política para as massas.

O processo alienador, realiza-se pela presença do mesmo sujeito na produção da sociedade e na manutenção do Estado. No entanto, a denominação real quando se trata de identificá-lo, na primeira, ele é visto como: indivíduo, trabalhador, cliente etc., e, no segundo como cidadão, porque, nas leis estão os direitos estabelecidos.

Com esse dimensionamento restrito, um outro prejuízo cultural foi subdividido e denominado como “obrigações sociais” e “deveres políticos”. Das obrigações, constam desde a importância da participação no trabalho, da religião, da educação escolar etc., e, dos deveres, o pagamento dos impostos, registrar os filhos após o nascimento, (para os homens), prestar serviço militar, votar nas eleições.

Do ponto de vista burguês, a sociedade capitalista funciona muito bem. Orientam-se eles pelas leis do valor, enquanto procuram, por meio da concorrência, afirmarem-se como protagonistas do processo da construção da sociedade civil.  O Estado surge como o garantidor das vontades pessoais coletivizadas. Reclamam de certas restrições, mas jamais defendem a superação deste instrumento de poder.

Apesar das leis sustentadoras do processo econômico, quanto as que comandam o Estado e a política, não serem totalmente compreendidas pela população em geral, a vida segue, orientada, mais pelas conformidades do que pelas normatividades. Sendo que, aqueles que tudo produzem não se sentem donos da própria produção, alienam-se dos objetos, assim como de si mesmos, quando se propõem a transformarem a força-de-trabalho ou o próprio corpo, oferecidos como mercadorias. O não percebimento que sem a participação individual nada se constrói socialmente, faz com que o “público” seja relegado e, apenas os bens privados merecem atenção.

O capital portanto, não é apenas uma foça social, mas também uma produção social feita inicialmente pelas gerações passadas e, a divisão social do trabalho, cada vez mais complexa. Da mesma forma, ocorre com o Estado. A sua formação não passou pela decisão de uma ordem individual. Ele é o resultado imposto pelas necessidades sociais e, por isso, uma criação social.

Para a maioria das pessoas, se o capital pertence aos capitalistas e o Estado às autoridades, resta apenas cumprir com as obrigações e praticar os deveres orientados pelas normas jurídicas, que tudo seguirá em frente, com um Sol nascido para todos.

Quando nos deparamos com os conflitos entre classes, é porque, em algum grau o domínio da alienação, rompeu-se e, embora não exigindo que os meios de produção sejam distribuídos, quer, pelo menos uma melhor remuneração para a mercadoria, força-de-trabalho. Nesse sentido, podemos dizer que os lutadores compreenderam as diferenças entre capital e trabalho, mas não há mudanças estruturais.

O mesmo fenômeno ocorre com o Estado. Quando as forças de esquerda enfrentam as forças de direita, é porque, frações das classes, descobriram que dentro do Estado há um governo que pode alterar certas coisas. No entanto, ao ganharem as eleições, assumem, representativamente o comando das instituições e passam a governar com a mesma estrutura, mantendo-a inclusive como era.

Se Karl Marx e depois Georg Lukács, compreendera que, a alienação, acima de tudo começa na produção e conduz para a reificação ou coisificação do trabalhador, este é o cerne do problema, se levarmos para a política, com o mesmo conceito. Então a esquerda deveria se perguntar, quem construiu o Estado capitalista? E, sendo que o trabalhador, reivindicando aumento de salário não muda o sistema econômico, será que o poder do voto poderia mudar a superestrutura jurídica e política?

Acima de tudo, é importante compreender que a alienação econômica, separa os trabalhadores dos produtos produzidos, tornando-os uma conquista do dono dos meios de produção; se o político eleito é uma “produção” do esforço coletivo do voto, eleito, o candidato, devido à democracia representativa, passa a ser uma conquista dele.

Sendo o mandato e os cargos públicos conquistados, tomados como patrimônios individuais, as forças de esquerda também se acostumaram a governar sem o povo, separando este da conquista e afastando-o do poder central que, se quiser melhorias nos benefícios, terá que reivindicar, sempre respeitando o Estado de direito e a estrutura do poder político. Desse modo, mesmo com outras cores, continua-se reproduzindo a sociedade alienada e, a ordem do partido de esquerda, vira no seu contrário tornando-se o partido da ordem.

Por este roteiro podemos concluir que, os processos eleitorais da forma como estão sendo conduzidos, não elevam o nível de consciência das massas e, além da alienação, efetuada pelo distanciamento das mesmas do exercício do poder, tal qual ocorre na economia, com a dependência dos trabalhadores de um patrão, na política, a dependência cairá sempre de um líder carismático de esquerda ou de direita, tanto faz.

                                                                       Ademar Bogo    



[1] KONDER, Leandro.  Marxismo e alienação: Contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação. São Paulo: Expressão Popular, 2009.