Este título é irônico? Mais irônica é a política. Mais ainda aqueles que, sabendo dos limites das ideias insistem em redigir um roteiro de igual natureza e sobrepô-lo ao anterior casando frase a frase e palavra com palavra.
É certo que deveríamos partir direto para o conflito entre
as ideias trazendo para o campo das discussões, como fez Rosa Luxemburgo, ao
confrontar os conceitos de “reforma ou revolução”, mas nos faltaria justamente
o principal que é o sujeito destinatário da convocação. Rosa ao criticar o
“revisionismo” percebeu que a mansidão do processo proposto cheirava a um
desejo de normalidade ordenada, ele levaria a um comportamento passivo dos
trabalhadores, quase exemplar aos olhos dos capitalistas. Por isso se propôs a
confrontar “o que”, com o “como”. Para ela, naquela situação, considerar a luta
sindical e a luta parlamentar como meios de dirigir e educar pouco a pouco o
proletariado, tendo em vista a conquista do poder era uma loucura.
O conceito de “estado de coisas” utilizado por Rosa é de fundamental
importância hoje, para observarmos os “instantes da política”. Para melhor
compreendermos aqui, transformamos “as coisas” do conceito, em forças. Na
medida em que elas se colocam de uma forma e não de outra, temos um “estado de
coisas” estabelecido, conflitivo ou concordado. No entanto, se houver qualquer
manobra, um passo à frente ou um passo trás, as mesmas forças mudam as
colocações e, o “estado de coisas” surge como outro cenário desejado ou não.
O problema maior é responder à questão, se os movimentos
e manobras, desejam um outro “estado de coisas” novo ou o sonho é voltar para o
estado anterior? Em História falamos de política e em política falamos de
História. “Falamos” porque contamos e analisamos o que já foi. Podemos até
dizer, narramos de maneira satisfatória ou apreensiva como éramos em comparação
com o que nos tornamos.
E eis então que podemos fazer política com estratégias e
perspectivas ou, ao contrário, com táticas e desejos saudosistas. Podemos ainda,
a partir do “estado de coisas” do tempo presente, insurgir os preparativos futuros
ou apenas buscar ter de volta o passado, reconstruindo o velho pote, que ao
cair quebrou-se em mil pedaços.
Por tudo isso, e na falta de um pouco mais de perspicácia,
vivemos os “dilemas rasos”. Rasos porque as ideias são pouco profundas, não
discutem os dilemas profundos e estruturais. Elas, sendo as mesmas das
cartilhas alfabetizadoras da política anterior, chegam até o grau da
conciliação. E, nesse movimento paciencioso, nem mesmo os conflitos das ideias
aparecem porque estão longe da realidade material. Preocupados com o “arco de
alianças” esquecem que aquelas forças exigirão a assinatura do contrato
mantenedor da ordem. E nesse linguajar quase musicado, as palavras, “revolução”
e “reparação”, rimam, mas indicam que os passos da dança são completamente
opostos.
Há muitas formas de confirmar o desejo de volta ao
passado. No estado de coisas colocadas no presente, há a luta pela reparação
dos “direitos políticos”, para que se tenha um candidato à altura em 2022. Não
é ruim. Diante dos acontecimentos, posicionar-se contra é um atentado ao bom
senso. Mas, por que isto tornou-se tão
importante? Porque o desejo, tal qual faz o “principio do prazer” na teoria de
Freud, leva a querer a reparação do “estado de coisas” já desfeito. Não seria
por que o conceito de democracia passou a ter um conteúdo que garante os
prazeres da classe média, egoísta e sonhadora com a reparação do mal a ela
causado pelo fim do paraíso institucional?
Vamos a um comparativo ilustrador. No início do
capitalismo os “socialistas utópicos” queriam reparar o movimento devastador
causado pelo avanço das forças produtivas sobre as relações sociais, morais e
religiosas, estruturando pequenas comunidades de produção cooperativadas. Na
oposição estava a burguesia que utilizava das reformas legais para
fortalecer-se enquanto classe para atacar o poder político e, por meio da
revolução criar o novo Estado. Portanto, já tivemos na História intenções e
processos relacionados nas três conceituações: reparação, reforma e revolução.
Se os “utópicos” partiam da reparação para chegarem às reformas, a burguesia
partia das reformas para chegar à revolução. Ela veio a ocorrer em 1789 na
França. Logo, presos à reparação, na atualidade, as forças que comporão o
sonhado “arco de alianças” para ganhar as próximas eleições, colocam-se um
passo atrás da velha burguesia.
Dois
pontos importantes podem ser considerados entre as iniciativas utópicas e
burguesas: a) ambas atuavam contra o estado de coisas daquele tempo; b) o ponto
divergente era que, os utópicos se orientavam pelos sonhos e os burgueses pelo
real concreto em busca do poder. Evidentemente a burguesia ao propor reformas,
aos poucos foi afirmando o reconhecimento das formas de produção e
comercialização capitalistas, elas rapidamente suplantaram as relações de
produção do feudalismo.
No tempo de Rosa Luxemburgo, diante do estado de coisas
postas pelo capitalismo, já não se tratava mais de propor reformas porque as
relações de produção já apontavam para a cooperação e socialização. Restava
fazer a revolução, tomar o poder e suprimir o sistema jurídico que ordenava,
coagia e garantia a propriedade privada dos meios de produção aos burgueses.
Sem estender-nos tanto, é importante pensarmos justamente,
se o “ser outro” melhor que imaginamos, está na direção do futuro ou do
passado? Se está no futuro não cabe a “reparação” pura e simples, porque ela se
coloca atrás das reformas burguesas que jamais saíram de pauta, mesmo dentro do
Estado capitalista. De tempos em tempos, de acordo com o “estado de coisas”, os
capitalistas mexeriam nas leis trabalhistas, previdenciárias, políticas,
fiscais, educacionais, orçamentárias, criminais, armamentistas e tantas outras.
De tal modo que, se os trabalhadores no intuito de intervirem na política,
propuserem reformas, assemelham-se aos burgueses do passado. Mal comparado,
seria como se, de um dia para outro os operários de uma fábrica, sem deixar de
serem operários, decidissem trocar o macacão e passassem a usar paletó e
gravata como uniforme, para, esteticamente imitarem os patrões.
Se não é, como disse Rosa Luxemburgo, “o que”, mas o
“como fazer” para mudar o “estado de coisas” que nos interessa, devemos
considerar como negativas todas as iniciativas que apenas visam a reparação de
direitos, de políticas públicas e medidas assistenciais. Os problemas
estruturais possuem causas estruturais e, não é porque o estado da colocação
das forças sociais no tempo presente não aponta para superá-las, que elas
deixarão de ser estruturais. Em algum momento teremos de enfrentá-las, para
tanto devemos nos ater ao “como”. Ele pode ser repetido no fazer, mas deve
intencionar ser diferente no querer.
O novo sujeito da História somente surgirá quando houver
História por fazer. Enquanto a História se repetir, como “farsa ou tragédia”,
os sujeitos serão os mesmos e os resultados cada vez pior.
Ademar Bogo