Quando Rosa Luxemburgo em 1916
escreveu “O folheto Junius: a crise da socialdemocracia alemã” e reelaborou a
tese de Engels, na qual havia afirmado que a sociedade capitalista se achava,
na década que ocorreu a Comuna de Paris, diante de um dilema: “Avançar para o socialismo
ou regredir para a barbárie”, tinha em mente o avanço do imperialismo no mundo
por meio da Primeira Guerra Mundial. Essa guerra, arraigada em ideias nacionalistas, havia fascinado os próprios
operários a entrarem nela ao lado das burguesias nacionais, levando a uma
profunda crise os partidos operários da época.
A certa altura da elaboração, Rosa
Luxemburgo evidenciando o processo vindouro, destacou com clareza que, a avidez
do capitalismo pela expansão imperialista, como expressão máxima do seu
amadurecimento, seguia a tendência econômica de transformar o mundo e as nações,
varrendo todos os métodos produtivos e sociais pré-capitalistas, subjugando
todas as riquezas e convertendo as massas trabalhadoras em escravos
assalariados.
Para além de todas as catástrofes
que a guerra estava provocando, basicamente destruindo algumas nações, o fator
mais intrigante era a destruição da consciência da classe operária, convencida
a morrer nos campos de batalha cada qual pela sua pátria. Era uma pena porque,
a tradição havia formado o movimento operário com as melhores e mais educadas
forças do socialismo internacional. Por isso Rosa concluiu o seu artigo dizendo
que, a principal missão imediata do socialismo, era “libertar espiritualmente o
proletariado da tutela da burguesia que se expressa através da influência da
ideologia nacionalista”.
A palavra de ordem assegurada por
Rosa Luxemburgo, “Socialismo ou barbárie”, mais do que duas sentenças
disjuntivas, era uma convocação a resistir e a superar o capitalismo; o que
fora feito um ano depois pelos trabalhadores russos em 1917. No entanto, a
barbárie a que Rosa se referia está muito aquém da que se abre sobre as nossas
cabeças na atualidade. Na época da Primeira Guerra Mundial, as disputas se
davam em favor da expansão imperialista do capital, para explorar os mercados
em lugares ainda não explorados. De lá para cá, o capital cumpriu com os seus
desígnios e fez, por meio das guerras, pela concorrência ou por convencimento
das nações, de que a única saída de salvação do capitalismo era implantar a
globalização. Com isso evitou um conflito armado universal e entregou ao
mercado a responsabilidade de fazer as disputas locais e garantir a ordem
mundial.
Na atualidade já não há mais o que
expandir, o capitalismo tornou-se um sistema universal. Para expandir-se terá
de ir para fora do planeta, o que ainda é uma aposta, e também de nada vale
explorar outros territórios, extraterrestres, se os consumidores de mercadorias
continuam sendo os mesmos. Ainda não temos noção do que será a exploração do espaço,
mas, sendo promissor e, não podendo a tecnologia dar conta de conduzir as
formas de produção, a humanidade poderá ver tornar-se realidade a ingenuidade
platônica que via dois mundos sobrepostos: sensível e inteligível. Nesse
sentido é que poderá renascer a forma de trabalho escravo, deslocando para o
mundo das ideias, parte das massas trabalhadoras, a outra alijada e sobrada do
processo de exploração aqui na terra, entregue a barbárie e como medo dos novos
traficantes de escravos, milícias e gangues, esconder-se-á como os primatas, em
cavernas subterrâneas.
A possibilidade de retrocesso do
capitalismo é uma possibilidade evidenciada por Marx e Engels no “Manifesto do
partido comunista”, de 1848, quando disseram, apesar do otimismo que alimentavam
do processo para frente, pelo avanço das forças produtivas que, “De repente, a
sociedade parece retroceder a um súbito estágio de barbárie; como se a fome ou
uma guerra universal exterminasse todos os meios de subsistência, uma espécie
de aniquilamento total da indústria e do comércio”.
Por enquanto, o capitalismo cumpriu
com o seu legado de ser um modo de produção, alienador e “coisificador”; incluem-se
nisso, os indivíduos sociais que, como coisas, movem-se em busca da realização
das trocas de si ou de suas forças, por salários ou penam sustentados pela assistência governamental presos nos currais eleitorais.
A destruição da classe operária e
das organizações que Rosa Luxemburgo evidenciara em seu artigo, ocorreu pelo
envolvimento ilusório dos trabalhadores como parte dos exércitos burgueses,
destruindo com isso, a consciência, a tradição intelectual e a capacidade de
defesa do socialismo. Vivenciamos agora, ambos os dilemas de forma ainda mais
acentuada. Com a globalização e o modelo neoliberal tivemos a dispersão dos
trabalhadores para novos ofícios que levou à inoperância a estrutura sindical,
fazendo com que ela já não responda pelas massas trabalhadoras. Por outro lado,
se não houve a cooptação das forças esquerda, para somarem-se aos exércitos em marcha
para a guerra, essas forças marcharam unidas com as burguesias nacionais para
as disputas institucionais, repetindo com a mesma tática a natureza do
pensamento nacionalista do passado, de governar para os interesses internos, entregando
novamente para o mercado a responsabilidade de substituir pela lei do valor o
“internacionalismo proletário”.
Podemos dizer que o entendimento
estabelecido por Rosa Luxemburgo sobre o conceito de “barbárie”, está aquém do
conteúdo que este conceito adquiriu ao longo do tempo, isto porque, se naquela
ocasião o imperialismo ensanguentava o mundo, abrindo espaço para a expansão do
capital e fazia dos trabalhadores das nações de estrutura pré- capitalistas
escravos da ordem mundial, na atualidade o intento da invasão territorial já
não goza de tanta dedicação e, no aspecto da exploração da força de trabalho,
se o princípio do “exército de reserva” era algo fundamental para estabelecer a
pressão dos desempregados sobre os trabalhadores empregados, o que vemos é a
conversão a um grande “exército de desvalidos”, porque possuem uma mercadoria sem
valor, pois já não interessa às forças produtivas do capital incluí-las no
mercado de exploração.
De outro modo, as funções do Estado
também sofreu grandes transformações. Se na Primeira Guerra Mundial, o Estado
cumpria o papel de ser a força dirigente do capital, impondo aos trabalhadores
a ordem a ser respeitada e, fundamentalmente, induzindo-os a aceitar o processo
de coisificação, era porque tinha algo a oferecer em troca, mesmo que fosse por
meio da “esperança destrutiva” que garantia aos sobreviventes uma nação mais
promissora. Na atualidade, nem o capital, nem o Estado têm mais nada a oferecer
às “massas de força sem valor”; nesse sentido, também não terão como
controlá-las.
Por que então devemos pensar para
“Além da barbárie”? Em dois sentidos. O primeiro sentido responde pela situação
certa de “desgovernança”, em que as estruturas paralelas ao poder estatal
público, como o tráfico, as milícias e as facções organizarão o próprio poder
territorial, como já ocorre em muitas favelas. Essas forças do “banditismo social”, tomarão
conta de amplos territórios urbanos, oferecendo serviços e garantias privadas,
em troca do pagamento de “impostos” e a colaboração individual por meio da
“servidão voluntária”, que fará renascer as relações escravistas, ao obrigar os
subordinados a realizarem tarefas e funções para os comandantes dos portões do
submundo do crime, ou, do mundo sensível na visão de Platão.
O segundo sentido deverá ser o
socialismo. O capitalismo está situado entre o feudalismo e o socialismo. Os
capitalistas sabem que não há como retroceder e, por outro lado, têm como
ameaça a barbárie e a possibilidade da superação pelo fortalecimento do
processo de transição socialista. No entanto, o socialismo significa: superação
material, política e cultural do capitalismo. No entanto, se do ponto de vista material,
as próprias forças produtivas encarregar-se-iam disso, do ponto de vista
político não.
A busca da transição socialista é
também uma procura que deve ser feita pelas forças que têm interesse em fazer
uma ruptura com o capitalismo. Caso não haja interesse, as mudanças para frente
não acontecem, a exemplo do que fizeram
os partidos socialdemocratas da Europa no período da Primeira Guerra Mundial ou
aqui e em outros países latino-americanos, a partir da década de 1980, que,
embora não existindo guerra mundial, ocorreu o mesmo com o pacto da não
ruptura, por meio da aceitação e a adoção da tática eleitoral.
Ir “além da barbárie” ou retroceder,
aprofundando-a, depende da disposição das novas forças políticas decidirem-se
pela disposição de deixarem de ser reféns das velhas organizações que visam a
governabilidade sistema vigente ao invés da construção do processo que leva à
transição socialista. De algum modo, a derrota socialdemocrata alemã de 1919
ainda não foi superada, pelo simples fato das esquerdas mundiais, com raras
exceções, insistirem em atuar conciliando-se com as classes dominantes.
Com não se aprofunda a barbárie sem
decadência, não se ascende ao socialismo, sem teoria, organização, decisão,
lutas e consciência.
Ademar
Bogo
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