A filosofia popular futebolística de que “quem não faz
leva” é bem comum e possível de ser aplicada em outras relações. Dialeticamente
falando, isso tem coerência lógica, porque, pela lei da unidade e luta dos
contrários, se um dos lados recua o outro avança.
O filósofo Karl Marx ao escrever a “Crítica da filosofia
do direito de Hegel”, deu início ao seu longo processo de avaliação do papel do
Estado e de como se deveria lutar para superá-lo. Diz ele no livro: “Do raciocínio
de Hegel segue-se apenas que o Estado, em que o “modo e formação da
autoconsciência” e a “constituição” se contradizem, não é um verdadeiro Estado”.[1] Ou seja, em qualquer época,
para ser um verdadeiro Estado não pode haver contradição entre a consciência e
as leis.
Esse amofinamento das forças de esquerda que angustiam
até mesmo as consciências menos evoluídas em defesa da lei e do Estado, parece
estar se tornando um caso doentio de paixão pela ordem capitalista, buscando
cumprir as recomendações desse “espírito absoluto”, somente para garantir o que
chamam de “democracia”, mas não passa do simples direito de disputar eleições.
Essa atrofia mental impedidora da capacidade de ser
formulado um pensamento crítico ou de se estabelecer um processo de lutas
contra ao que está posto, simplesmente porque “pode fortalecer as forças de
direita”, é simplesmente indução para tornar-se cumplice do jogo conformista de
aceitar as derrotas porque o azar tomou conta das disputas.
Houve um tempo em que se podia diferenciar dois tipos de consciência
presentes nas forças de esquerda. A consciência um, representada pela
combatividade exposta nas lutas concretas, nas quais se misturavam os sujeitos revolucionários
e as entidades de classe e, de outro lado, a consciência dois, menos combativa,
mais legalista e formuladora de ideais democráticos, palatáveis para as forças
de direita, descontentes com as táticas escolhidas por eles mesmos para jogarem
o jogo da dominação. Como lá também acontece o mesmo fenômeno de que “quem não
faz leva”, parte daquelas forças acharam graça nos malabarismos efetuados pela consciência
dois e se aliaram a esses representantes.
De algum modo devemos reconhecer que há circunstâncias
históricas que mudam as próprias circunstâncias e, para não sairmos da metáfora
do jogo, imaginemos que um certo dia surge um comunicado aos times concorrentes,
que algumas regras mudaram e quem quiser competir deverá adequar-se a elas. O
dilema é real, mas, para não ficarem de fora, os times descontentes, além de
participarem precisam defender o regulamento.
O processo que levou ao estrangulamento político vivido
na atualidade, cuja preocupação de manter o “Estado democrático de direito”, é
mais da esquerda do que das forças de direita, iniciou junto com a ascensão das
lutas sociais na década de 1980. Para derrotar a ditadura militar, exigiu-se a
democratização com a elaboração de uma nova Constituição. Muitos entenderam ali
que o processo eleitoral deveria ser o caminho da democracia, tanto assim que,
para elaborar a Carta Magna foram eleitos os deputados e deputadas para o
Congresso Nacional Constituinte. Logo em seguida, a obsessão pela
governabilidade, como caminho mais fácil, rápido e menos violento, provocou a
unidade das forças para enfrentar as eleições presidenciais, quase vitoriosas
no pleito de 1989.
A militância mais experiente recorda-se que as campanhas
eleitorais adotavam os mesmos métodos dos protestos, cuja base fundamental era
tomar as ruas e pichar os muros com dizeres propagandísticos e ofensivos aos
inimigos. Estabilizada a “democracia representativa”, começaram as restrições e
estas levaram às mudanças de hábitos. O oficio das pichações foi juridicamente
proibido e o que antes era feito clandestinamente com os próprios veículos dos
militantes, muitas vezes presos, passou a ser colagem de cartazes e os
conhecidos e caríssimos “outdoors” com grandes imagens, porém, o trabalho passou
a ser feito por empresas especializadas em conformidade com a lei. As próprias
campanhas eleitorais de rua passaram a ser feitas com pessoas contratadas como
diaristas e os programas da propaganda eleitoral gratuita, quem assumiu à
frente foram os marketeiros da mídia.
O que sobrou para as centrais sindicais e movimentos populares
foi a manutenção de suas responsabilidades reivindicativas, porém, exprimidos
pelo calendário eleitoral, quando, nos pleitos específicos, o ano administrativo
é encerrado nos primeiros seis meses e depois tudo torna-se campanha eleitoral.
Como ganhou a tendência de ter representantes parlamentares por setores, os laços
com a institucionalidade tornaram-se cada vez mais estreitos.
Esse processo de enfraquecimento das pernas das lutas,
fortaleceu cada vez mais o pescoço das disputas eleitorais, que permite a
alguns setores de esquerda andarem de cabeça erguida, mas com o olhar voltado
para as restrições jurídicas e, essas mesmas forças que deveriam lutar contra a
ordem, passaram a gostar e a gastar tempo para defendê-la.
De volta à filosofia do “quem não faz leva”, para chamar
a atenção de que, aparentemente as forças ultradireitistas foram derrotadas,
mas estão em campo e, num contra-ataque poderão desempatar o jogo eleitoral, como
ocorreu na Argentina recentemente. Como a luta de classes foi convertida em
torcida eleitoral, a derrota, neste campo, fará todos ficarem de cabeça baixa e
sem forças nas pernas para dar um passo à frente.
Já é hora de retomar a formação da consciência um, e
separar as forças de lutas de esquerda dos governos de esquerda, dominados pela
consciência dois. É possível haver apoio mútuo, mas a autonomia de cada lado é
fundamental. A luta de classes poderá ir até o fim no dia em que os governos
reformistas e legalistas não se colocarem como meio.
Ademar Bogo