O filósofo Walter
Benjamin, expôs em seu texto “Sobre o conceito de História” (2008) que o
materialismo histórico tem como dever, fixar uma imagem do passado e mostrá-la
no momento de perigo, ao sujeito atual, isto para que ele veja o que ameaça,
tanto a existência da tradição como aqueles que a recebem. Esse perigo pode ser
o de entregar-se às classes dominantes e continuar sendo instrumento de uso
delas. Então diz textualmente: “Em cada época, é preciso arrancar a tradição do
conformismo que quer apoderar-se dela”.
Muito teríamos de pensar sobre as
tradições, principalmente nessas expressas pelas concepções de mundo, como o
cristianismo que, ao passar os primeiros trezentos anos de existência foi
cruelmente perseguido pelos imperadores romanos, vindo a ser reconhecido apenas
com o Edito de Milão, no ano de 313. No entanto, o terror romano ao ser diluído
como imagem histórica, permitiu que a própria Igreja instalasse, no ano de 1233,
por ordem do Papa Gregório IX, o “Tribunal da Santa Inquisição”, substituindo a
jaula dos leões, pelas fogueiras acesas pelos delegados governamentais. Até o
momento nada de tão horripilante veio a se propor como repetição, mas é bom ficarmos
atentos e, sempre nos momentos de “perigos políticos” observarmos como se movem
os agentes das religiões.
Por outro lado, a concepção de mundo
liberal, formulada pelos filósofos da modernidade, dando à nascente burguesia
mercantil e industrial, os fundamentos para escaparem das limitações impostas
pelo poder feudal. As respostas dadas por eles para chegarem a estabelecer a
unidade política e atrair a maioria das forças sociais, em torno do tripé: “liberdade,
igualdade e fraternidade”, foram com a violência revolucionária e a criação de
instrumentos de poder coercitivo, para anular qualquer iniciativa de reversão
da ordem que eles oficializaram. Porém, eles sempre estiveram em alerta, pois
sabem o que é ficar sem um poder de defesa e ter uma guilhotina armada em cada
praça, para onde os populares podem levar os escolhidos e decapitá-los como foi
feito na França a partir de 1792.
Do ponto de vista da concepção de
mundo do materialismo histórico, cabe à classe trabalhadora organizada,
apresentar as imagens do passado, como as rebeliões sufocadas dos escravos na
antiguidade, sanguinária repressão efetuada pela burguesia contra a Comuna de
Paris em 1871, e tantos outros atos semelhantes. No Brasil, se tomarmos somente
a tradição republicana, iremos encontrar as crueldades jurídicas e políticas,
contra o povoado de Canudos destruído e a maioria da população morta pelas
forças militares do Estado brasileiro. O mesmo ocorreu com o Contestado em
Santa Catarina; mais adiante, a perseguição aos revolucionários da “Intentona
Comunista” de 1935 e, os mesmos lados enfrentando-se no pós-golpe de Estado de
1964, quando vários grupos rebeldes foram dizimados. E sem passar a memória por
todos os fatos, chegamos ao período de 2019-2022, quando a nova corrida do ouro
na Amazônia, levou ao sufocamento e extermínio das comunidades indígenas e, com
objetivo semelhante, procedeu-se, em nome da comprovação da hipótese da “Imunidade
de rebanho”, com ordem do poder executivo, de não importar vacinas, quase um
milhão de pessoas, em menos de dois anos perderam a vida.
Por outro lado, temos um pensamento
expresso por Kar Marx e Friedrich Engels, no livro “A ideologia alemã” (2009),
que nos alerta para os perigos do esquecimento da tradição de não percebermos
que: “...a existência de ideias revolucionárias numa determinada época
pressupõe desde já a existência de uma classe revolucionária...”.
Nessa última visão, devemos nos dar
conta do perigo iminente da tradição nos vir a surpreender, talvez não pela
crueldade, mas pela ingenuidade. Nesse aspecto não podemos ampliar muito, mas a
discussão deveria voltar-se para o paradoxo: governabilidade e organização de
classe. Já vimos que pelo processo eleitoral, tendo em vista inserir as forças
politicas e sociais no comando do Estado, não surgem nem são formuladas “ideias
revolucionárias” e, provavelmente porque, olhando para o pensamento acima, já
não há classe revolucionária e, neste sentido, a primeira alternativa ilude e
anula a possibilidade da segunda iniciativa.
Se não podemos falar de tradição longínqua,
podemos falar desse século que já teve, a ascensão dos trabalhadores ao
governo, um golpe de Estado, a reedição do neonazismo abrasileirado e o retorno
das mesmas forças impedidas com os mesmos aliados ao governo. E no momento que
todos observam as pesquisas para saberem se o jeito de governar está correto, e
como se a imagem do passado fosse a mesma da “ordem e do progresso”, os perigos
ficam encobertos pelas expectativas sem um fiapo de ideias revolucionárias,
porque não há classe revolucionária organizada. Mas por que não há, se temos
homens e mulheres carregados com mesmos e com outros problemas que ameaçaram as
gerações do passado?
O conformismo apoderou-se também
desta época. Enquanto o agronegócio e a grande mídia esperam que Lula ordene
que o MST pare com as ocupações; o MST espera que o governo negocie e libere
créditos; os banqueiros olham para o Banco Central e exigem juros altos; o
capital especulativo impõe o superavit primário e o respeito ao teto de gastos;
os pobres e famintos aguardam as bolsas e a oposição nazista espera o desgaste
da autoridade governamental para desfechar um novo golpe ou voltar com as
mesmas vestimentas e pijamas manchados nas próximas eleições.
O dilema político de deixar-se ou
não usar pela classe dominante, nessa viagem com paradas previstas a cada
quatro anos, parece ter tomado conta desta época. O esquecimento e o
conformismo impedem as ideias de preverem os perigos futuros. Eles já se
mostram no brilho dos dentes dos cães raivosos, embarcados no último vagão e
nos acenos da ex-primeira-dama correndo para livrar-se do enquadramento no
roubo das joias da coroa.
Ignorar passivamente os perigos vai
contra a tradição revolucionária. É preciso sacudir as ideias para que elas
acordem as consciências adormecidas, mas para isto é preciso colocar as
soluções diante de cada problema e avaliar como devem ser superados. As
relações divergentes entre exploradores e explorados, dominadores e dominados,
já estiveram presentes em todas as épocas, não sejamos conformistas, os mesmos
perigos que rondaram as gerações passadas, ansiosas por mudanças estruturais, permanecem
ativos e prontos para nos golpearem. Precisamos que, o movimento e as ideias
revolucionárias voltem a ser maiores que os perigos que ameaçam a humanidade.
Ademar
Bogo